Resenha: Naomi Osaka e os atravessamentos de gênero, raça e nacionalidade de uma celebridade do tênis

por Ana Carolina Vimieiro (@carolvimieiro13)*


Ficha técnica

Título: Naomi Osaka: Estrela do tênis
Ano de produção: 2021 (3 episódios)
Direção: Garrett Bradley
Duração: 38 minutos (cada episódio em média)
Classificação: 12 anos
Gênero: série documental; esporte
Países de Origem: EUA
Onde assistir: Netflix


Para quem gosta de tênis e acompanha a modalidade já há alguns anos, é inegável que Naomi Osaka é uma figura cativante. Naomi ganhou seu primeiro Grand Slam em 2018 numa final “estranha” contra sua ídola de infância, Serena Williams, alcançando o estrelato quase que da noite para o dia. Eu me lembro desta final, em que Serena buscava o 24º título para se igualar à australiana Margaret Court como a maior campeã de majors da história. Essa foi uma das últimas finais que ela fez nos grandes eventos do tênis, a última no US Open e o 24º título acabou não acontecendo naquele jogo e nem depois. Na final em questão, Serena brigou com o juiz por se sentir perseguida e as imagens de Naomi, completamente sem lugar, intimidada pela situação inédita de receber o troféu e sem graça pelas condições do jogo, foram marcantes. Me lembro de torcer por Serena, claro. Mas também lembro da simpatia imediata com aquela nova figura. O constrangimento dela em “estragar” os planos do público era intrigante e soava verdadeiro numa modalidade em que os discursos dos campeões são sempre repletos de clichês e esvaziados de espontaneidade.

Naomi Osaka constrangida no pódio para receber seu primeiro título de Grand Slam, no Aberto dos EUA em 2018

Foto: AP Photo/Julio Cortez
Disponível em: https://www.espn.com/tennis/story/_/id/24619049/us-open-2018-naomi-osaka-was-denied-magic-moment
Acesso em: 24 fev. 2023

Desde então, Naomi virou minha jogadora favorita. Por inúmeras razões. Com a proximidade da aposentadoria de Serena, que viria em 2022, eu “precisava” encontrar alguém para acompanhar. E Osaka, juntamente com Ashleigh Barty, são irresistíveis em algum sentido. Sim, claro, são ótimas jogadoras. Talentosas e dedicadas. Mas mais que isso: revelam condutas que as diferenciam no circuito. Barty decidiu se aposentar no ano passado no auge. Com um tênis altamente competitivo, chamava atenção por sua trajetória “errante”, no melhor dos sentidos. Brilhou inicialmente nas duplas (com Casey Dellacqua) e seu jogo, muito inteligente, não encaixava nas simples. O esgotamento e estresse com as viagens constantes a fizeram largar o tênis em 2014, aos 18 anos, e apostar numa carreira no críquete. No início de 2016, ela voltou, virando número 1 do mundo em 2019 e anunciando a aposentadoria depois de ganhar o Australian Open em 2022. Sempre me chama atenção esses casos, de trajetórias que fogem ao padrão em atletas. E o comportamento de Barty sempre foi humano “demais” para uma tenista, o esporte que dizem é necessário um controle emocional imenso. Para completar, é orgulhosamente descendente de aborígenes por parte de pai, e declarou várias vezes que sua maior ídola no esporte é a também aborígene e australiana Evoone Goolagong. Barty jogava demais e era legal, no melhor dos sentidos novamente. Por isso disse que ela é irresistível pois sou daquelas que precisa se identificar com a pessoa da/o atleta para torcer por ela/e.

E a Naomi, bom, para quem não a conhece, a série é um ótimo cartão de visitas. Composta de imagens do circuito e da vida privada da jogadora, a série busca apresentar quem é a Naomi pessoa e a Naomi atleta. Não temos grandes inovações narrativas aqui e o interessante se resume à própria personagem principal, que é contudo intrigante o bastante para uma série documental de três episódios. Para além do tênis agressivo e extremamente eficiente sobretudo em quadras rápidas, onde Naomi ganhou seus quatro Grand Slams até o momento, a série dá destaque para como ela desafia algumas dinâmicas típicas do esporte. 

A primeira delas é o incômodo que tem com o processo de celebrização que se seguiu ao seu primeiro major. O primeiro dos três episódios da série é focado nisso. As dificuldades que ela sempre enfrentou com o excesso de atenção da mídia e com o excesso de atividades extras que atletas profissionais se engajam (entrevistas, participação em programas de TV, campanhas publicitárias, eventos de patrocinadores, da WTA, entre outros). Fica claro de cara que Osaka queria ser jogadora de tênis mas não celebridade. E que o desarranjo inicial menos que imaturidade diz mais de uma certa incompatibilidade de sua personalidade com as lógicas midiatizadas do tênis de alto rendimento. 

A maioria das pessoas que a acompanham sabem que ela é introvertida, mas um detalhe revelado pela série e que eu desconhecia é que Osaka teve uma educação domiciliar (homeschooling). Ela mesma comenta na série que talvez seja essa uma das razões que a faz uma pessoa reservada e avessa ao excesso de atenção. Diferente de outras/os atletas que se deslumbram com o estrelato e não sabem lidar com a situação do sucesso repentino, a série mostra que Osaka continua incomodada com essas lógicas mesmo depois desse período de ajuste. O caso de 2021, em Roland Garros, quando a atleta se recusou a participar das entrevistas coletivas tradicionais que ocorrem durante o evento, não é retratado na série que foi lançada por volta do mesmo período, mas diz justamente desse tipo de incômodo. À época, a atleta argumentou que tais imposições contribuem para problemas de saúde mental no âmbito do esporte e que não aceitaria o comportamento das organizações esportivas que continuam a dizer para as/os atletas que elas/eles têm que atender à imprensa ou serão multados. Em mensagem nas redes sociais, Osaka afirmava que desejava que as multas que recebesse pela conduta fossem direcionadas para organizações voltadas para questões de saúde mental.

De alguma forma, Naomi estava colocando um limite no tipo de abuso e mesmo assédio que atletas profissionais têm que suportar em nome do profissionalismo. As rotinas do esporte de alto rendimento e midiatizado impõem um conjunto de dinâmicas aos atletas, como as inúmeras entrevistas em que são questionadas as mesmas coisas e que, para Osaka, “levantam dúvidas” sobre o próprio potencial da/o atleta, sendo em grande medida altamente danosas para a saúde mental. A posição de Osaka ecoava também o discurso de outras atletas de alto rendimento, destacadamente Simone Biles, que tensionou as mesmas questões durante sua participação nos Jogos Olímpicos de Tóquio que ocorreram em 2021.

Esses e outros episódios da trajetória de Osaka revelam uma conduta não robotizada da atleta, que não aceita ter seu corpo e sua mente controlada por diversos mecanismos existentes no âmbito do esporte e que esvaziam as modalidades de qualquer sentido de humanidade. Para além da cena que narrei no início, a série apresenta o episódio em que Naomi Osaka se recusa a tratar com frieza o sofrimento da jovem promessa Coco Gauff, dos EUA, depois de uma derrota contundente para Osaka. Ao se aproximar de Coco para os cumprimentos do fim do jogo, Osaka conversa com a oponente que estava em lágrimas e a convence a ficar para a entrevista pós-jogo em quadra (quando tradicionalmente apenas a vencedora é entrevistada). Naomi se emociona durante a entrevista dizendo para a família de Coco que ela se lembrava de treinar nos mesmos locais que ela e que eles deviam ficar orgulhosos do talento e persistência de Coco, que tinha um futuro brilhante pela frente.

Naomi Osaka consola a atleta dos EUA, Coco Gauff, depois de perceber que ela está em prantos com a derrota contundente por 6-3, 6-0 no US Open de 2019

Foto: USA Today
Disponível em: https://www.usatoday.com/story/sports/ftw/2019/09/01/us-open-naomi-osaka-comforts-coco-gauff-after-match/40057783/
Acessada em: 24 fev. 2023

Outro ponto muito bem explorado na série é como a experiência de Naomi é atravessada pelos marcadores de gênero, raça e nacionalidade. Essa questão é central no último dos três episódios. Um dos melhores trechos narra o burburinho que se seguiu ao anúncio de que Osaka representaria o Japão nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Em uma fala contundente sobre as tensões e questionamentos que surgiram, Naomi diz:

“eu tenho jogado com a bandeira do Japão desde que eu tinha 14 anos. E nunca foi segredo que iria jogar pelo Japão nas Olímpiadas. Então, eu não escolhi os EUA e, de repente, as pessoas estão dizendo: sua negritude está revogada e, sabe, americanos afrodescendentes não são os únicos negros [no mundo]… As pessoas não sabem realmente a diferença entre nacionalidade e raça porque tem um monte de pessoas pretas no Brasil e eles são brasileiros”.

Naomi Osaka em série documental da Netflix

Na sequência, a série mostra Osaka trançando os cabelos e falando do medo de se envolver em polêmicas. Medo que parece advir tanto da ideia do atleta disciplinado, do corpo-máquina que não deve se manifestar sobre assuntos políticos. Quanto da criação japonesa, que também reserva um lugar às mulheres de submissão. Em outra fala de destaque a atleta diz que “tem essas coisas que eu começo a querer dizer mas eu me sinto super amedrontada….porque eu, supostamente, devo ser uma boa pessoa, silenciosa, para manter a imagem”.

O medo é superado quando, durante a pandemia, atletas como Lewis Hamilton e astros da NBA se juntam ao Black Lives Matter em virtude do assassinato de George Floyd e Osaka decide, inclusive, participar de protestos de rua nos EUA. Na série, esse momento é narrado como uma nova guinada na carreira, já que o nome do episódio é “Novo Caminho”. É nesse momento que Naomi decide também se juntar aos protestos em quadra ao boicotar a semifinal do torneio de Cincinatti e usar máscaras com os nomes de diferentes vítimas da violência policial no US Open 2020, vencido novamente por ela.

As sete máscaras com sete nomes diferentes de pessoas pretas vítimas da violência policial nos EUA usadas por Naomi Osaka durante o US Open 2020

Montagem: Complex Sports
Disponível: https://www.reddit.com/r/pics/comments/irnpt1/the_seven_face_masks_naomi_osaka_wore_during_her/
Acessada em: 24 fev. 2023

No processo, Osaka parece também se reencontrar com suas raízes. Ela revela o incômodo por não falar tanto japonês. Diz que gostaria de falar mais para ser mais representativa do país que escolheu representar. Neste episódio, a mãe e o pai de Osaka, Tamaki Osaka e Leonard François, respectivamente, contam um pouco de suas histórias de vida. Das dificuldades de viverem no Japão, onde a família da mãe era muito restrita e o pai tinha dificuldades de inserção. E da decisão de viverem nos EUA, onde Naomi e a irmã cresceram.

A última parte do episódio acompanha a visita da família Osaka ao Haiti. As cenas mostram uma Naomi descontraída, jogando baralho com os pais no avião. No Haiti, o pai de Naomi fala do espírito revolucionário do país, de resistência ao colonialismo. Também vemos imagens da Osaka Foundation, uma academia de tênis voltada para crianças de famílias pobres criada pelos pais da atleta na comunidade de seu pai. Naomi troca bolas com uma criança e fala sobre não ter vivido experiências como ter frequentado a “high school” (ensino médio) ou ir para a universidade. A série é finalizada destacando os feitos da atleta até o momento: quatro títulos de Grand Slam e ser a primeira jogadora asiática a ocupar o posto de número 1 do mundo.

* Ana Carolina Vimieiro é professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. É a coordenadora do Coletivo Marta.

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