Resenha: Ted Lasso e o futebol como um espaço para outras masculinidades

por Luisa Almeida de Paula (@itsluisaalmeida)*


Ficha técnica

Título: Ted Lasso
Ano de produção: 2020 (2 temporadas até o momento)
Produção: Jason Sudeikis, Bill Lawrence, Brendan Hunt e Joe Kelly
Duração: 30 minutos (cada episódio)
Classificação: 15 anos
Gênero: Comédia dramática; esportes
Países de Origem: EUA
Onde assistir: Apple TV+


Ted Lasso é uma série do serviço de streaming AppleTV+, baseada no personagem de mesmo nome que o ator Jason Sudeikis interpretou em uma série de promos da NBC Sports para promover a cobertura da Premier League, liga inglesa de futebol, nos Estados Unidos. Nas peças publicitárias, Ted Lasso é um treinador de futebol americano que foi contratado por engano para ser o novo treinador do clube inglês Tottenham Hotspur F.C. O comercial fez tanto sucesso na audiência estadunidense, que fez com que Jason Sudeikis mantivesse a ideia e, anos depois, ajudaria a criar e escrever a série de TV Ted Lasso – com algumas nuances e mais profundidade do que o comercial. Assim nasceu a vencedora de 11 Emmys e um dos maiores sucessos do streaming.

Filmes e séries dizem do curso sócio-político da sociedade, sendo fundamental estudar o impacto que esses artefatos culturais possuem na formação e representação de sentidos. Segundo Stuart Hall, a “representação é uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura” (HALL, 2016, p. 31). Na série em questão, Ted Lasso usa o futebol como um braço para explorar assuntos como masculinidade, sentimentalismo, amizade, perdão, mentalidade e outros assuntos que, geralmente, não pensamos quando pensamos em futebol.

Tendo os comerciais como base, a série apresenta Ted Lasso (Jason Sudeikis), um treinador de futebol americano universitário da Wichita State University, no Kansas, que é escolhido para ser o mais novo treinador do AFC Richmond, um pequeno e modesto clube de futebol da cidade de Richmond e que joga a Premier League, primeira divisão do futebol inglês. Gerenciado por Rebecca Welton (Hannah Waddingham), a contratação de um caipirão americano que nunca treinou futebol nem sabe nada sobre o esporte e suas regras para assumir o time faz parte de um plano de Rebecca para acabar com o clube e se vingar de seu ex-marido e ex-sócio do clube, Rupert Mannion (Anthony Head), que dava mais atenção ao Richmond do que a ela. Ted decide aceitar o novo emprego e se muda para a Inglaterra junto com o Coach Beard (Brendan Hunt), seu melhor amigo e assistente técnico. Após assumir o clube oficialmente, logo cria elos especiais com Rebecca, dona do clube; com o roupeiro do clube, Nathan (Nick Mohammed); Higgins (Jeremy Swift), braço direito de Rebecca e Diretor de Operações do Futebol, como também, com dois jogadores do elenco: Roy Kent (Brett Goldstein) e Jamie Tartt (Phil Dunster). Keeley Jones (Juno Temple), “famosa por ser quase famosa” e que vai ter um relacionamento amoroso com os doisjogadores, completa o elenco de personagens principais.

São vários os motivos da série ter caído no gosto de tantos espectadores e arrebatado os principais prêmios em cerimônias: Ted Lasso representa outras performatividades de gênero possíveis em um meio de predominante masculinidade tóxica. Se o sentido é construído pelo sistema de representação, Ted Lasso produz outros sentidos sobre o futebol e sentidos de uma realidade que nos permite sonhar e acreditar.

A masculinidade tóxica é um comportamento designado ao gênero masculino que causa malefícios tanto para o homem quanto à sociedade; são traços projetados sobre o sexo masculino para que adotem atitudes e costumes considerados tóxicos. Em outras palavras, a masculinidade tóxica pode ser vista como um conjunto de estereótipos restritos ao sexo masculino como: valores patriarcias, autoritarismo, imposição, agressividade, violência de gênero, homofobia, a restrição para entrar em contato com as emoções, a não-demonstração de afeto, etc. O futebol, sendo um esporte e ambiente predominantemente masculino, perpetua e, por muito, incentiva traços considerados intrínsecos à masculinidade tóxica como a hiper competitividade; autossuficiência individualista; tendência ou glorificação da violência; chauvinismo masculino; sexismo; a misoginia; heteronormatividade (crença na naturalidade e superioridade da heterossexualidade dos cis gêneros); o direito a ser o alvo da atenção (sexual) de mulheres; objetificação e infantilização das mulheres, etc.

Um exemplo dentro do futebol brasileiro foi visto em janeiro de 2021, quando o então treinador do São Paulo, Fernando Diniz, destila ofensas contra seu atleta Tchê Tchê durante um jogo contra o RB Bragantino. Na ocasião, Tchê Tchê se aproximou da lateral do campo para entender o que estava acontecendo e indagou o técnico: “não posso falar com você?”, no que Diniz responde de forma brusca: “Não pode mesmo. Tem que jogar, crlh*! Seu ingrato do crlh*! Seu perninha do crlh*! Mascaradinho, vai se fu**!”. O episódio repercutiu por toda a imprensa e veículos de mídia, destacando o desequilíbrio emocional e o perfil negativo de liderança de Diniz. O jogador, atualmente no Botafogo, em entrevista ao The Players Tribune, detalhou a depressão que sofreu durante essa passagem pelo São Paulo e falou que escondeu a situação do clube, que não tinha vontade de treinar, nem de jogar e chorava o tempo todo. Atitudes como essa do Fernando Diniz, de técnicos que explodem à beira do campo (exemplos não faltam: Cuca, Abel Ferreira, etc) são tidos como “normais” do futebol, nunca sendo de fato combatidas ou discutidas – e se discute é mimimi. O debate, ainda incipiente, está longe de pautar nossas conversas sobre futebol.

Fotos: Rubens Chiri / saopaulofc.net
Montagem: Lance!
Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/tche-tche-fala-sobre-briga-com-diniz-raiva-incontrolavel,6ccf1617d6a7fe6505c6f25566ae8e65759lfzam.html
Acesso: 13 fev 2023

Atitudes e comportamentos como esse são reprimidos e criticados em Ted Lasso. Na série, Ted Lasso vai totalmente de encontro com esses padrões e normas pré-estabelecidas culturalmente, uma vez que ele é um técnico de futebol masculino mas que não reproduz nem performa nada similar a essa masculinidade considerada tóxica. E é esse fator “surpresa”. inesperado, que faz da série um sucesso. Ted apresenta outra masculinidade possível: ele encoraja seus jogadores a serem sempre melhores. A se manterem psicologicamente saudáveis. Passa as noites fazendo biscoitos para levar para sua chefe na manhã seguinte. Lasso acredita numa masculinidade acolhedora, gentil, que leva os sentimentos em consideração. Ele não parte para a violência e agressividade para resolver os conflitos. É um treinador que não grita ou menospreza seus jogadores, pelo contrário, potencializa-os ao máximo para se tornarem suas melhores versões e, assim, serem os melhores jogadores possíveis. É otimista, motivador, tagarela, empolgado; acredita que vencer não é sempre o mais importante e, acima de tudo, acredita (em referência ao cartaz Believe que ele pregou no vestiário do clube). Aposta na gentileza, coletividade, acredita e respeita as mulheres (sim, o mínimo). Dentro do campo, não é um gênio e exímio conhecedor do esporte bretão (e é daí que vêm o fator cômico da série), mas reconhece isso e pede ajuda, ouve todos os funcionários para tentar desenvolver um trabalho melhor.

Ted Lasso (Jason Sudeikis) preparando biscoitos em cena da série

Foto: AppleTV+
Disponível em: https://grottonetwork.com/navigate-life/health-and-wellness/ted-lasso-biscuit-recipe/
Acesso em: 13 fev 2023

Não basta aos treinadores terem um bom conhecimento técnico, dominar táticas, aplicar estratégias, saber mexer no time e encarar diferentes formações, é preciso saber gerenciar pessoas e jogadores, criar um bom clima no vestiário, potencializar seus jogadores e fazer com que todos trabalhem em conjunto por um objetivo maior. É dessa forma que Lasso vai criar um elo especial com o jogador valentão e raivoso, Roy Kent. Meio-campista, ídolo do Chelsea e capitão do Richmond, Kent já se aproxima do final de sua vitoriosa carreira em um nível abaixo dos dias de glória. Kent é construído como um personagem que reprime suas emoções, muito bravo, explosivo e independente: traços típicos de uma masculinidade tóxica. Com o novo treinador, vai ser desafiado a quebrar esses padrões de comportamento dentro e fora de campo. Outro elo especial de Ted é com o playboy artilheiro e destaque do time, Jamie Tartt. O camisa 9 é construído como o pegador, sensual, hiper-competitivo e individualista, também traços de masculinidade tóxica, mas que ao trabalhar com o ‘coach Lasso’ será confrontado em suas atitudes e posturas. Os sentidos de masculinidade que Ted Lasso produz são vistos e recebidos por todos do elenco do Richmond, ajudando a mudar a cultura futebolística daquele clube.

O personagem Roy Kent faz sucesso junto ao público, com memes, gifs, stickers entre outros artefatos sendo encontrados aos montes na Internet

Disponível em: https://cdn.shopify.com/s/files/1/0562/4689/4747/products/STK176_800x.jpg?v=1641244956
Acesso em: 13 fev. 2023

Outro padrão de masculinidade também é representado (e incentivada) na série por meio dos Diamond Dogs, quando Ted, Higgins (Diretor de Operações do Futebol), Coach Beard (melhor amigo e assistente técnico de Ted) e Nate (roupeiro do clube que Lasso integra em sua comissão técnica), se juntam ocasionalmente para partilhar seus sentimentos, desabafar, pedir conselhos e conversar. Pode parecer clichê, mas é justamente por ser ‘clichê’ que é cômica: homens que se juntam para receber carinho e pedirem ajuda, coisa não muito comum. É raro.

A importância da representação e, consequentemente, da produção de sentidos, ecoa no casting do show. O AFC Richmond é dirigido por uma mulher, Rebecca Welton (Hannah Waddingham), o que nos faz pensar nos lugares em que as mulheres ocupam dentro do futebol e, principalmente, dentro da estrutura do futebol. Quantos clubes são geridos por mulheres no país? E quantos clubes têm mulheres em cargos de liderança e autoridade? Pensamos logo na Leila Pereira, presidenta do Palmeiras que por ser mulher, enfrenta críticas fundadas por machismo e misoginia, conforme a própria já declarou em entrevistas.

Ainda sobre as mulheres e as outras representações de gênero que Ted Lasso apresenta, temos duas personagens principais: Rebecca Welton, a dona do AFC Richmond, e Keeley Jones, que logo se torna melhor amiga de Rebecca. O “Teste de Bechdel” é um teste que questiona se em uma obra de ficção (filme, série ou livro) pelo menos duas mulheres conversam entre si sobre algo que não seja um homem, a fim de entender como a nossa sociedade representa a mulher, muitas vezes sendo um indicativo de preconceito de gênero. E em Ted Lasso, a amizade das duas é um dos pontos fortes. Sororidade, perdão, empatia e cumplicidade são a base da amizade de Keeley e Rebecca, que conversam sobre homens, mas também conversam sobre futebol, sobre família, desabafam e fazem piadas juntas; uma relação construída de forma completamente orgânica e delicada pelos criadores da série, que perpassa a televisão. Ao ser perguntada sobre a amizade de Keeley Jones e Rebecca em entrevista para Jimmy Fallon, Juno Temple falou que Hannah Waddingham (que interpreta Rebecca) mal pode esperar para mostrar a série para a filha quando crescer porque “não é muito comum ver uma série ou filme em que duas mulheres são realmente amigas, se amam e torcem uma pela outra, de forma genuína”. Daí temos outro diferencial das diferentes representações de gênero em Ted Lasso: não é muito comum vermos uma amizade feminina na TV que não é combativa e sem constante superioridade.

Olhar de cumplicidade de Keeley (Juno Temple) para Rebecca (Hannah Waddingham) em Ted Lasso

Foto: AppleTV+
Disponível em: https://fangirlish.com/2021/07/01/ted-lasso-the-power-of-friendship-keeley-rebecca/
Acesso em: 13 fev 2023

Ted Lasso nos ensina que outras masculinidades são possíveis e outros sentidos devem ser encorajados. Que o meio do futebol, marcado pela masculinidade tóxica, pode ser um lugar melhor, mais acolhedor e sensível às questões humanas (e isso sem tocar nas questões de racismo que a série também traz). Que é possível, embora desafiador, ser bom. Para quem vê, a série pode parecer cheia de clichês. Bom, para muitos, pode até ser. Até porque estamos acostumados com um futebol completamente distante deste representado em Ted Lasso. Mas evocar emoção, sonhar, pensar no que significa ser humano, ver as coisas com novos olhos, são coisas fundamentais que se tornaram escassas ou negligenciadas. Tudo isso com um timing cômico apurado, com piadas e trocadilhos inteligentes que te fazem voltar à cena para rir de novo – até porque Jason Sudeikis é cria do SNL Saturday Night Live.Nada na cultura acontece em um vácuo. Só da série existir e, facilmente, ter caído no gosto da audiência, já diz de mudanças na sociedade, já representa o hoje da nossa sociedade. Cultura é um modo de vida compartilhado de sentidos e significados; é o modo como a sociedade é concebida e vivida pelas pessoas. Tendemos a pensar linearmente: é sempre sobre o que a série vai fazer com a sociedade e não sobre o que ela já diz sobre a sociedade. Neste caso, Ted Lasso nos mostra que, ainda principiante, o debate e as discussões sobre representação e outras masculinidades são urgentes e necessárias também no contexto do futebol.

* Luisa Almeida de Paula é historiadora formada pela UFES e mestranda em Comunicação pela UFMG. Mineira e atleticana, integra o Coletivo Marta.

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