Resenha: Atleta A e o abuso sexual contra crianças no esporte

Por Júlia Cruz e Rafaela Lacerda


Ficha técnica

Título: Athlete A (Original)
Ano de produção: 2020
Direção: Bonni Cohen, Jon Shenk
Duração: 144 minutos
Classificação: 16 anos
Gênero: Documentário
Países de Origem: EUA
Onde assistir: Netflix


Ser uma ginasta profissional de alto nível significa trabalhar rigorosamente e se dedicar a longos treinos diários que ocupam a maior parte de seus dias e consequentemente de sua vida. Diversas crianças e adolescentes aceitam vivenciar essa rotina e estilo de vida por anos, objetivando a realização de seu sonho: competir em uma Olimpíada; e muitas vezes essa dedicação pode deixá-las suscetíveis a diversos problemas como distúrbios alimentares, pressão psicológica, medo e solidão, assim como violência física e verbal, incluindo abusos sexuais.

No ano de 2016, a equipe jornalística do The Indianapolis Star descobriu um arquivo de queixas de assédio contra 54 técnicos e expôs diversos outros casos de abusos sexuais acobertados durante anos pela Federação de Ginástica dos Estados Unidos da América – o caso foi posteriormente retratado no documentário Atleta A, dirigido por Bonni Cohen, Jon Shenk e produzido pela Netflix, ganhando maior notoriedade. Ao mesmo tempo em que a descoberta foi realizada, acontecia no Rio de Janeiro as Olimpíadas, competição que provou mais uma vez o expressivo desempenho do país norte-americano no esporte – considerando apenas a ginasta Simone Biles, 5 medalhas foram garantidas, sendo 4 de ouro.

Diante dessa dualidade entre a aparição de casos de assédio e a reputação estadunidense na competição, nenhuma atitude foi tomada pela organização de ginástica, com o objetivo de proteger a imagem e moral dessa instituição esportiva, como também no sentido de acobertar atitudes antiéticas dos homens que compõem a equipe, evitando ao máximo que tais crimes se tornassem públicos, ao mesmo tempo em que número de jovens vítimas molestadas aumentava gradativamente.

O tratamento dado pela Federação de Ginástica dos EUA a partir processo de denúncia, que se mostra mínimo – é estimado que para cada 1000 abusos sexuais, 230 são levados à polícia (Truman e Langton, 2014) -, não legitima a ação da vítima: a ginasta Maggie Nichols (Atleta A) foi cortada do time de elite que iria disputar as Olimpíadas de 2016 após relatar a ocorrência, e viu seu sonho de se tornar uma atleta olímpica sendo negado pelo poder de atuação de terceiros.

Maggie Nichols, protagonista do documentário Atleta A

Disponível em: https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-reviews/athlete-a-review-1299967/. Acesso em: 09 de outubro 2022.

O documentário relata o histórico de abusos de membros da instituição esportiva de forma a quase montar um quebra-cabeça e, ao longo da produção, além de relatos das vítimas, também é apresentado um contexto geral envolvendo o histórico da ginástica nos Estados Unidos da América que tenta produzir uma explicação envolvendo o ambiente propício ao abuso infantil e, consequentemente, ao assédio sexual. 

A narrativa é fortalecida a partir do depoimento de outras 5 atletas, além da protagonista Maggie Nichols. As ginastas Jamie Dantzscher, Rachael Denhollander, Jessica Howard, Jennifer Sey e Tracee Talavera foram cruciais para o desenvolvimento da investigação contra o médico da federação, Larry Nassar, e seus relatos, especialmente no tribunal, revelam uma atitude extremamente corajosa de denunciar as situações que tantas meninas compartilharam. Essas sobreviventes – termo preferível em relação a “vítima” – e seus depoimentos são fundamentais para dar voz a quem sofre ou sofreu quaisquer tipos de abuso, a fim de evitar a perpetuação de casos similares.

Metodologia da crueldade

O filme Atleta A mostra que o “padrão” físico das atletas como sendo meninas pequenas e jovens foi construído a partir do fim da década de 1960 e fortalecido após a conquista da medalha de ouro pela romena Nadia Comaneci nas Olimpíadas de 1976. Antes desse período, considerando as décadas de 1950 e 1960, as competidoras eram mais velhas, mulheres “formadas”, mas após Comaneci vencer o ouro com apenas 14 anos, foi estabelecido uma nova estética, um biotipo ideal para se tornar uma ginasta bem-sucedida. Por esse motivo, meninas mais jovens passaram a participar de competições, alcançando resultados destacáveis. Estas começavam a treinar desde a primeira infância, o que as tornava muito vulneráveis a violências e permitia com que seu comportamento fosse influenciado fortemente pelos adultos.

O casal de treinadores Béla e Martha Karolyi foi responsável pela conquista de Nadia, e após a Guerra Fria, passaram a coordenar a Federação de Ginástica dos Estados Unidos da América, sendo responsáveis pela gradativa ascensão e sucesso do país no esporte. Nesse sentido, o acampamento Karolyi Ranch, primeiramente utilizado antes das Olimpíadas de 1988, se configurou num espaço de treinamento de elite intensivo na preparação de ginastas para a competição olímpica. As atletas eram mantidas no local durante semanas, em uma jornada imersiva, em que o contato com o mundo externo era limitado, inclusive restringindo a proximidade das moças com sua própria família.

Casal de treinadores Béla e Martha Karolyi acompanhados da atleta Kerri Strug

Disponível em: https://www.cheatsheet.com/entertainment/athlete-a-what-is-the-new-netflix-documentary-about.html/. Acesso em: 09 outubro 2022.

Em muitos momentos, o documentário evidencia que o desconforto das atletas nesse acampamento e o treinamento pesado era generalizado, não se restringindo à experiência de um indivíduo. As garotas se sentiam intimidadas e eram levadas ao limite físico e mental dia após dia, sendo obrigadas a treinar ainda que estivessem lesionadas. Além das exigências corporais e psicológicas, as ginastas seguiam uma dieta muito rígida, e se viam pressionadas a continuar perdendo peso em prol do bom desempenho esportivo nos treinos e, como consequência, nas competições.

Momentos de fragilidade como esses eram aproveitados por Larry Nassar, que buscava reforçar seu papel de “médico legal” e se tornar um apoio emocional no ambiente hostil e repressivo. Diversas atletas apresentam depoimentos sobre o comportamento do médico, um indivíduo no qual as atletas podiam confiar, alguém que as entendia e ajudava a aliviar a tensão, sempre se mostrando prestativo, calmo, oferecendo, inclusive, doces de forma escondida para reforçar essa relação de confiança, método que funcionava. Nessas situações de vulnerabilidade, o abuso de poder ganhava espaço. 

Atleta A nos mostra que a cultura da ginástica olímpica, bem como de outros esportes, pode ser bastante tóxica. Apesar de Nassar ser o principal agressor, o longa retrata como o conjunto de pessoas envolvidas e os fatores que compunham aquele ambiente permitiam a persistência da violência por tanto tempo dentro da federação.

Caso semelhante no Brasil

Em 2016, logo após a grande repercussão do escândalo que envolve a série de abusos sexuais cometidos pelo ex-médico da Federação de Ginástica dos Estados Unidos, Larry Nassar, iniciou-se, no Brasil, uma movimentação sobre um possível caso semelhante, que posteriormente teve sua veracidade confirmada.

Fernando de Carvalho Lopes, membro da comissão técnica da seleção brasileira masculina de ginástica durante dois anos, foi acusado de abusar física, moral e sexualmente de 42 atletas, entre eles Petrix Barbosa, ouro nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, em 2011. A carreira do treinador foi bastante reconhecida no Mesc (Movimento de Expansão Social Católica), clube da cidade de São Bernardo do Campo, interior de São Paulo, e o conjunto de crimes no qual ele está envolvido foi praticado por ao menos 15 anos – sendo o primeiro relato de 2001. O escândalo em questão veio a público através do programa Fantástico da TV Globo, veiculado no final de abril de 2018.

Técnico de ginástica brasileiro Fernando de Carvalho Lopes

Disponível em: https://interativos.ge.globo.com/ginastica-artistica/abuso-na-ginastica/especial/escandalo-na-ginastica. Acesso em: 09 outubro 2022.

Assim como Nassar, o profissional brasileiro utilizava de sua influência e poder dentro da instituição para abusar das crianças. O perfil das vítimas, nesse caso, é caracterizado pela presença de atletas homens, mais jovens e tímidos, alguns em situação financeira mais humilde, que inclusive chegaram a morar com o treinador na casa que dividia com seus pais.

Relatos indicam que as ações de Fernando eram de conhecimento de outros técnicos, e que estes nunca as denunciaram para autoridades responsáveis, contribuindo assim para a continuidade dos casos de violência contra diversos ginastas brasileiros.

Buscando uma relação entre os dois casos, percebe-se a forte influência do jornalismo investigativo na proposta de dar visibilidade ao caso e buscar justiça às tantas vítimas de ambos os abusadores. Essa veiculação, muitas vezes, deixa de ser realizada pela imprensa esportiva, que tem fortes ligações com as instituições do ramo, algumas até financeiras, e passa a ser divulgada por setores/departamentos com viés mais investigativo, ou até mesmo por advogados e profissionais diretamente relacionados com funções jurídicas.

Repercussão

O trabalho realizado pela Netflix com o objetivo de expor mundialmente o ocorrido foi de suma importância para mostrar a relevância do ato de denunciar, e reforça, inclusive, a necessidade de um esforço para que a conversa seja iniciada. 

Atleta A se revela um grande incentivador para a quebra de silêncio de inúmeras atletas, sejam mulheres ou homens. Desde que o documentário foi lançado, centenas de novas denúncias foram feitas: ginastas de países como Inglaterra, Suíça, Austrália, Nova Zelândia, Holanda e Bélgica denunciaram os abusos psicológicos e sexuais cometidos por membros de equipes dos clubes dos quais são atletas. O Brasil compartilha espaço nessa lista com o caso de assédio moral e injúria racial denunciado pelo ginasta Angelo Assumpção.

Apesar de sua importância, não apenas o lançamento do documentário foi responsável para dar visibilidade à necessidade de denúncia. A própria atitude de coragem que as atletas demonstraram apresenta enorme significado na tentativa influenciar outras pessoas a denunciarem seus abusadores e quebrarem a corrente de silêncio, perpetuada em incontáveis casos. O silenciamento foi lamentavelmente fortalecido no cenário vivenciado pelas ginastas devido à construção de todo um ambiente repressor e de ausência de possibilidade de escuta. Estatísticas de abuso sexual apontam para o fato de que a grande maioria das pessoas que sofrem a ação revelam já conhecerem seus abusadores, porém essa impotência no ato da denúncia se torna responsável pela subnotificação dos crimes.

Nesse sentido, é preciso entender que existe a necessidade da construção de espaços seguros e transparentes que permitam que as vítimas se sintam à vontade para relatar qualquer incômodo, evitando a cultura do silêncio e abrindo espaço para a escuta e posterior investigação de denúncias.

REFERÊNCIAS

ATHLETE A FILM. Disponível em: https://athleteafilm.com/. Acesso em: 03 out. 2022.

ATLETA A. Bonni Cohen, Jon Shenk. Estados Unidos da América: Netflix, 2020. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81034185. Acesso em: 03 out. 2022.

CAIO RODRIGUES. Atleta A: A verdade por trás do escândalo. In: CAIO RODRIGUES. Revista Pagu. 01 jul. 2020. Disponível em: https://revistapagu.com.br/atleta-a-netflix-critica/. Acesso em:  08 out. 2022. 

CATHERINE WRIGHT. ‘Athlete A’: What Is the New Netflix Documentary About? In: CATHERINE WRIGHT. CheatSheet. 06 jul. 2020. Disponível em: https://www.cheatsheet.com/entertainment/athlete-a-what-is-the-new-netflix-documentary-about.html/. Acesso em: 09 out. 2022.  

ISABELA DE OLIVEIRA. Abuso sexual: maior parte dos agressores conhece vítima, diz estudo. In: ISABELA DE OLIVEIRA. Correio Braziliense. 31 mar. 2015. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2015/03/31/interna_ciencia_saude,477660/abuso-sexual-maior-parte-dos-agressores-conhece-vitima-diz-estudo.shtml. Acesso em: 08 out. 2022.  

JOANNA DE ASSIS. Escândalo na ginástica. In: JOANNA DE ASSIS. Globo Esporte. 29 abr. 2018. Disponível em: https://interativos.ge.globo.com/ginastica-artistica/abuso-na-ginastica/especial/escandalo-na-ginastica. Acesso em: 09 out. 2022.  

LESLIE FELPERIN. Athlete A’: Film Review. In: LESLIE FELPERIN. The Hollywood Reporter. 23 jun. 2020. Disponível em: https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-reviews/athlete-a-review-1299967/. Acesso em: 09 out. 2022.  

MATHEUS MACEDO. Doc “Atleta A” impulsiona denúncias de abuso sexual. In: MATHEUS MACEDO. Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema. Disponível em: https://cinemacao.com/2020/09/05/documentario-atleta-a-impulsiona-ginastas-de-diversos-paises-a-denunciarem-casos-de-abuso-sexual/amp/. Acesso em: 08 out. 2022.  

TRUMAN, Jennifer L.; LANGTON, Lynn. Criminal Victimization, 2014. In: Bureau of Justice Statistics. Ago. 2015. Disponível em: https://bjs.ojp.gov/library/publications/criminal-victimization-2014. Acesso em: 03 out. 2022.

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