Análise de campanha: Disney apresenta  jornada de atletas latino-americanas na campanha “Histórias que Inspiram”

Por Gabriela Araújo, Maria Carolina Martins e Wesley Felix


Ficha técnica

Campanha: Histórias que Inspiram
Ano de lançamento: 2022
Agência/Criação: Walt Disney World
Produto: Disney Princesa
Marca: Disney


Com o compromisso de apoiar o esporte como forte contribuidor de transformações sociais, a Disney apresentou ao público a campanha “Histórias que Inspiram”, com a franquia Disney Princesa e em colaboração com o grupo de mídia ESPN. As produções audiovisuais apresentam ao público quatro atletas olímpicas e paralímpica e mostram os caminhos, como protagonistas, percorridos por cada uma em suas respectivas modalidades e suas ligações com as princesas do universo cinematográfico. As produções, em comemoração ao mês das princesas, contam ainda com dois vídeos: Atitudes, que lista uma série de ações inspiradoras, e Manifesto, uma carta aberta motivacional que apresenta uma diversidade de meninas em contato com as princesas da Disney.

Além de destacar as histórias inspiradoras, através de imagens das práticas esportivas, as produções buscam incentivar jovens e crianças de todos os cantos do mundo a lutarem com garra e força por seus objetivos e sonhos. E o apoio não fica só no mundo das palavras: visando o fortalecimento do impacto social esportivo, o grupo Disney realizou uma doação de cerca de US$100.000 para a Coaches Across Continents, uma ONG que atua na educação por meio do esporte em várias partes do mundo. A campanha também teve a consultoria da primeira agência de marketing esportivo 100% dedicada ao esporte feminino, Classe das Campeãs.

Beatriz Ferreira e Mulan: jovens guerreiras e lutadoras

Bia Ferreira, vice-campeã olímpica, é a principal estrela da campanha

“Eu sou a Beatriz Ferreira, campeã mundial, filha de Raimundo Sergipe Ferreira. Meu pai é tricampeão brasileiro de boxe. E foi aos quatro anos que eu falei para o meu pai que eu queria ser uma atleta, que eu queria ser uma Ferreira campeã como ele”. Assim começa o relato da boxeadora vice-campeã olímpica, em seu vídeo da campanha, que conta com mais de um milhão de visualizações no canal do YouTube da Disney Brasil. 

Logo no início da produção, a boxeadora soteropolitana cita uma expressão que ouviu diversas vezes ao longo de sua jornada, que “(…) teoricamente, boxe é coisa de homem. E eu me vi no direito de provar que não. Não tem essa de menino ou menina. Tem talento, esforço e vontade”. Tal fala se relaciona com as discussões sobre as representações da corporalidade feminina dentro do esporte e os apontamentos da boxeadora encontram força no pensamento da historiadora norte-americana Mary Jo Festle, que aponta dois tipos de preconceito social sempre sofrido pelas mulheres atletas:

(…) primeiro, que suas ‘diferenças físicas’ as faziam muito menos competentes para o esporte do que os homens, e, segundo, que a prática esportiva as masculinizava, tornando-as mulheres ‘anormais’ e/ou lésbicas.

FESTLE, 1996, p. 265 apud ADELMAN, 2003

Por quase 30 anos, o boxe feminino foi proibido no Brasil. O Decreto-Lei nº 3.199, promulgado à época do governo de Getúlio Vargas, em 1941, não apenas legitimava a proibição da prática esportiva do futebol feminino em terras brasileiras, mas também de “toda prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza [feminina]”. Se o esporte jogado com os pés era considerado violento e não adequado para o sexo feminino, por sua “fragilidade”, há de se pensar a impossibilidade de uma mulher praticando boxe. 

E além de estar em uma modalidade que confronta a presença de mulheres, Beatriz Ferreira também é o próprio contraste de como um corpo feminino deveria ser aos moldes da sociedade, até mesmo um corpo feminino esportivo. No começo da inserção das mulheres no mundo do esporte, lhes era “aconselhado” a prática de modalidades onde o corpo não seria “masculinizado”, assim, mantendo suas formas curvilíneas, e que as tornassem melhores reprodutoras, a principal incumbência de uma mulher naquele tempo.

O corpo feminino ‘ideal’ é magro e firme, embora não ‘musculoso demais’ – e requer muitas horas de trabalho, de investimentos em tempo e dinheiro que, com certeza, não estão à disposição de uma boa parcela da população feminina. (ADELMAN, 2003, p.6)

O boxe feminino no cenário internacional

A questão de gênero do boxe não fica apenas em solo brasileiro, estendendo-se para o campo internacional. Uma das modalidades mais tradicionais dos Jogos Olímpicos, o boxe está presente no programa do megaevento desde sua terceira edição, em St. Louis-1904. No entanto, desde sempre apenas homens participaram. A inclusão das mulheres no maior evento esportivo do planeta só ocorreu em Londres-2012, 108 anos após a primeira aparição da modalidade. Ainda assim, a participação das boxeadoras femininas foi restrita: elas participaram de apenas três categorias – inclusive, a brasileira Adriana Araújo conquistou uma medalha de bronze (peso leve) -, enquanto os homens estiveram presentes em dez disputas. O número de categorias aumentou ao longo dos anos, mas as mulheres ainda ficaram para trás. Em Tóquio-2020, houve oito torneios masculinos e apenas cinco femininos.

Se considerarmos o esporte olímpico como um todo, a situação não é diferente. Muito por conta dos valores conservadores do idealizador do Comitê Olímpico Internacional (COI), o Barão de Coubertin, os Jogos Olímpicos foram um espaço em que os esportistas homens eram privilegiados em relação às mulheres. As disputas femininas só foram incluídas na segunda edição dos Jogos, em Paris-1900, com a presença de 22 mulheres (2% do total de atletas). A participação feminina cresceu ao longo das décadas do século XX, mas os homens permaneceram como maioria: em Atlanta-1996, por exemplo, apenas 34% do total de atletas eram mulheres. Esse número aumentou nas edições seguintes, até chegar em 48% da participação feminina em Tóquio-2020, um recorde histórico. A promessa do COI é de que Paris-2024 ofereça uma equidade de gênero, com 50% da participação de homens e de mulheres.

Diante de todo esse contexto, a fala de Beatriz Ferreira é muito forte. O esporte sempre foi um campo machista, e as disciplinas olímpicas não escaparam disso. O fim do Decreto-Lei que proibia a prática do boxe feminino no Brasil apenas em 1979 atrasou o desenvolvimento da modalidade em todo território nacional. Além disso, o longo período sem a prática da modalidade por mulheres fez com que comentários de que “boxe é um esporte para menino” fossem recorrentes e estivessem (talvez até hoje estão) presentes no imaginário popular. 

Com a mudança de chave e as conquistas recentes das mulheres brasileiras, este cenário tem iniciado um processo de inversão, ainda que a passos lentos. Hoje, o Brasil caminha para ser uma das potências mundiais do boxe feminino, sendo liderado por Beatriz Ferreira, dona de um currículo extenso que inclui a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio-2020, um ouro e uma prata em Campeonatos Mundiais e um ouro nos Jogos Pan-Americanos Lima-2019. Além de Bia, a seleção brasileira da atualidade conta com medalhistas pan-americanas como Jucielen Romeu e medalhistas mundiais, como Caroline Almeida.

A corporalidade feminina no contexto esportivo

Ainda refletindo sobre as significações do corpo feminino dentro do âmbito desportivo, após a apresentação de sua história inspiradora, é realizada uma associação de Beatriz Ferreira com Mulan, uma jovem guerreira que, assim como Bia, foi treinada por seu pai. A relação com as personagens não parece ser o ponto principal e foco da campanha, mas é passível de reflexões. Aqui, a própria Mulan, que não é uma princesa, confronta a noção do ser feminino; uma menina guerreira que se disfarça de homem para entrar no exército chinês, lutar uma guerra no lugar de seu pai (com limitações de idade e físicas) e salvar o Império Chinês. Da mesma forma, Mulan – apresentada no enredo de 1998 – não se encaixa nas convenções de ser uma “boa esposa” segundo as tradições chinesas. A associação de Bia com Mulan parte da semelhança entre as histórias cheias de dedicação, e aparentemente, não encontra relações ao próprio ser de uma princesa, algo propriamente feminino. Refletindo sobre os arquétipos tidos como femininos designados às princesas, pode-se colocar Mulan como a guerreira-heroína.

Inicialmente representado pelo aspecto evolutivo dinâmico da masculinidade, o arquétipo da Guerreira-Heroína exibe traços positivos de independência, coragem e força. Generosa defensora da verdade e da justiça, a Boa Guerreira se dispõe a qualquer coisa por aquilo que acredita e/ou ao serviço daqueles que não podem se defender (RANDAZZO apud LOPES 2015, p.16).

De igual modo, é válido pensar se a relação com as histórias inspiradoras das princesas da Disney, por parte das atletas, é algo preexistente ou uma associação realizada exclusivamente em decorrência da campanha desenvolvida. Assim, há – de forma intencional ou não – um exercício “forçado” de se relacionar o ser feminino, representado pelas princesas, às atletas. A narrativa construída pela campanha parece seguir o imaginário de que toda criança, menina, cresceu querendo ser uma princesa e/ou almejando suas histórias de amor, ou seja, mantendo uma princesa da Disney como preferida. Todavia, acontece também o movimento de apenas relatar os detalhes ditos como inspiradores; a coragem, força, paixão e determinação.

Ariel (1989), Pocahontas (1995) e Mulan (1998) se encontram em uma segunda fase de classificação das princesas da Disney; a fase das princesas rebeldes, de 1989 a 1998 (LOPES, 2015). A primeira trata-se das princesas clássicas, que englobam as personagens dos filmes de 1937 até 1959 que eram o “espelho” da feminilidade, delicadas, bonitas e também “(…) mulheres enaltecidas, idolatradas, idealizadas pelos homens segundo o perfil “esposa-mãe-dona-de-casa”, cujo único objetivo é encontrar o amor verdadeiro e, a partir daí, se dedicar à sua única razão de viver: cuidar do marido, dos filhos e da felicidade da família.” (LOPES, 2015, p. 42). 

Já as princesas rebeldes vão contra o tradicional buscando sempre a independência: a pequena sereia, Ariel, apresenta uma curiosidade pelo além mar e desafia as ordens de seu pai; Pocahontas é uma aventureira que, indo contra as tradições, se recusa a casar com o melhor guerreiro da tribo, o seu prometido; Mulan é a própria essência de rebeldia ao entrar no exército chinês disfarçada de homem no lugar de seu pai. Neste período, mesmo com a presença de príncipes, as personagens já são, assim como as atletas, protagonistas de suas próprias histórias. O amor verdadeiro não é mais o objetivo e “fim da caminhada” e sim, parte dos acontecimentos. Deste modo, parece haver – por parte da Disney – uma ressignificação da própria noção de ser uma princesa, não se limitando à fragilidade, feminilidade, uma busca incessante por um amor, delicadeza e sim, uma valorização dos aspectos que as tornam protagonistas por si mesmas.

Alexa Moreno, a ginasta mexicana que encontra inspiração em Frozen

Alexa Moreno em sua apresentação na trave em Tóquio-2020 

Além de Bia Ferreira, a campanha apresenta histórias inspiradoras de três atletas. Uma delas é da ginasta Alexa Moreno, finalista olímpica do salto sobre a mesa (aparelho da ginástica artística) em Tóquio-2020. Ela ingressou no mundo esportivo aos três anos, já praticando a modalidade que anos mais tarde a consagrou como uma das grandes atletas do planeta. Em seu vídeo, Moreno relata o seu amor por “estar no ar”, como se, por um microssegundo, pudesse verdadeiramente voar. No mundo das animações dos estúdios Walt Disney Picture, Alexa destaca a força, ousadia, coragem e resiliência da Rainha da Neve, Elsa, personagem do grande sucesso de bilheterias Frozen, lançado em 2013. A ginasta encontra conexões com a protagonista no que envolve a “luta contra si mesma”. Elsa ao lidar com seus poderes congelantes, que a afastaram de sua irmã Anna na infância e juventude, e Alexa em sua constante busca por experiências novas, se pressionando e correndo riscos.

Refletindo sobre as relações corpóreas de mulheres atletas, Alexa Moreno – ao praticar ginástica artística – está mais próxima do que se considera “padrão” no contexto da prática esportiva feminina. Todavia, a atleta sofreu ataques por sua forma física, durante os Jogos Olímpicos da Rio-2016. À época com 1,47m e 45kg, ela foi alvo de xingamentos gordofóbicos por internautas, por estar fora dos padrões da ginástica artística. Portanto, parece haver, em todas as categorias esportivas, um controle no que se diz respeito à corporalidade feminina.

Jacinta Martinez Ranceze; a Pequena Sereia multicampeã no nado sincronizado

A jovem atleta argentina Jacinta Martinez Ranceze deu “as primeiras braçadas” ainda aos seis meses de vida e desde bem pequena se imaginava como uma verdadeira sereia. Por sua coragem, a personagem favorita de Jacinta é a Ariel, a Pequena Sereia, e a inspiração não poderia ser melhor. Martinez tem o mar como sua segunda casa, amando estar na água e se sentindo livre, como se estivesse em outro mundo.

A Pequena Sereia, clássico de 1989, conta a história da filha mais nova do Rei Tritão que mantém o desejo de fazer parte do mundo dos humanos e, ao espiar uma festa, acaba se apaixonando por um príncipe da “terra”. Após ser confrontada por seu pai por ter ido à superfície e para realizar o seu sonho e conquistar o amor verdadeiro, Ariel faz um acordo com uma bruxa do mar, Úrsula, que some com sua voz – única maneira de seu príncipe a reconhecer – em troca de suas pernas.

A Pocahontas das duas rodas; Macarena Pérez e sua história com o BMX

A jovem chilena Macarena Pérez, que sempre contou com o apoio familiar, deu as pedaladas iniciais aos 11 anos. Anos mais tarde, ela viria a ser finalista olímpica no ciclismo BMX Freestyle nos Jogos de Tóquio-2020. Em seu vídeo, ela conta que sua modalidade era pouco difundida quando começou a praticá-la, “(..) para uma mulher, era difícil sonhar com uma carreira no BMX.”

Macarena se inspira em Pocahontas por sua coragem e paixão e, assim como a ‘princesa’, “é uma alma livre que foi levada pelo vento”, no caso, levada pela bicicleta ao BMX. Pocahontas, protagonista da animação de 1995, é uma jovem indígena filha do chefe da tribo Powhatan, prometida ao maior guerreiro de seu povo, que, com a chegada de colonos ingleses, se apaixona por um capitão forasteiro e juntos, lutam para evitar uma guerra entre os “dois mundos”.

Tal como Beatriz Ferreira, e diferentemente de Moreno e Martinez, Macarena não está inserida em uma modalidade ligada de forma direta ao ser feminino. O esporte que envolve manobras perigosas seria, aos moldes do Decreto-Lei nº 3.199, veementemente proibido às mulheres. 

Relações entre a estética da limitação e a campanha “Histórias que Inspiram”

De alguma forma, todas as atletas englobadas nas produções desafiam a feminilidade que se espera de um corpo feminino inserido dentro do âmbito esportivo. Bia Ferreira, além da própria prática do boxe, por seu porte físico forte; Alexa Moreno por não se encaixar no imaginário de um corpo de ginasta artística; Jacinta Martinez por “desafiar” uma sociedade capacitista; e Macarena Pérez por não apresentar, aos olhos da sociedade, um corpo que pertenceria àquele esporte. Segundo a filósofa americana Susan Bordo, a busca da feminilidade não só ainda se apresenta como o caminho mais importante para a aceitação das mulheres na sociedade, como também pode ser compreendida como uma limitação no que envolve os comportamentos e a corporalidade feminina. Assim, é criada uma “estética da limitação” em relação aos corpos das mulheres e o mesmo acontece às atletas; “(…) a feminilidade é produzida através da aceitação de restrições, da limitação da visão, da escolha de uma rota indireta” (SUSAN apud ADELMAN, 2003).

A estética da limitação pode ser trabalhada dentro do mundo desportivo no sentido de resistência desses corpos femininos; atletas que não apresentam um corpo “apropriado” e condizente com o esperado de uma mulher praticante de algum esporte. Sendo assim, acreditamos que as produções audiovisuais feitas pela Disney, com a associação das princesas do universo, desafiam – de modo consciente ou não – o imaginário popular sobre as noções de feminilidade esperadas de uma mulher atleta e permitem refletir sobre essa quebra de estereótipo. Mesmo considerando que as produções em questão reforçam, em certa medida, a percepção de que toda menina se identifica, ou algum dia já se identificou, com uma princesa e sua narrativa, entendemos que os pontos abordados nos vídeos focam mais em exaltar as características inspiradoras das personagens, colocando as atletas, e princesas, protagonistas de suas próprias histórias. 

REFERÊNCIAS

ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, v. 11, p. 445-465, 2003.

LOPES, Karine Elisa Luchtemberg dos Santos. Análise da evolução do estereótipo das princesas Disney. 2015

***Esta crítica foi produzida como atividade da disciplina Laboratório de Comunicação e Esporte ofertada no semestre 2 de 2022 no Departamento de Comunicação Social da UFMG. A disciplina foi ministrada pela Profa. Ana Carolina Vimieiro e pela mestranda Flaviane Eugênio.***

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