Indicação: Desvendando a homofobia e o machismo no futebol

Por João Victor Silva de Carvalho e Matheus Andrade Hermógenes


A homofobia e o machismo sempre se apresentaram como empecilhos para a boa prática do esporte e o respeito à existência de mulheres e pessoas LGBTQIA+ nas variadas modalidades esportivas. No futebol, a discussão sobre esses fenômenos sempre foi um tabu a ser superado. Pautas negligenciadas em muitos momentos perpassam a história do esporte, tendo influenciado e sendo influenciadas pelo modo como o esporte dialoga com a sociedade como um todo. 

Tanto nos times masculinos, quanto nos femininos, demonstrar interesse afetivo ou sexual por pessoas do mesmo sexo muitas vezes foi considerado um impeditivo para ter sucesso na carreira. Quer por meio de boicote de clubes e torcidas, quer por insegurança, muitos atletas de ambos os sexos se viram tendo de escolher entre viver livremente sua verdade e ter os dias contados no esporte, ou investir na carreira e passar a vida escondidos nos armários dos vestiários.

Além disso, em sua atual conjuntura, mesmo para indivíduos cuja cis e heterossexualidade não são as discussões em foco, o esporte parece estar atrelado a uma noção compartilhada cujas dinâmicas são pautadas, principalmente, pela exaltação de uma masculinidade tóxica e defesa de práticas e representações marcadas pelo binarismo, um ideal no qual o gay e o feminino, ao ressignificarem as leituras sobre os corpos e performances em campo, são lidos como ameaças. Mas ameaça a quê e a quem exatamente?

É nessa temática que são construídos os episódios do podcast Nos Armários dos Vestiários, produzido pelo GE, braço esportivo da Globo na internet, e pela produtora de conteúdo Feel the Match, disponibilizado no Globoplay e nas principais plataformas de áudio. Apresentado pelos jornalistas Joana Assis e William De Lucca, o podcast critica a homofobia enraizada em forma de piadas e o ambiente de masculinidade agressiva do esporte, abordando ao longo de nove episódios as trajetórias e memórias de como atletas, técnicos, árbitros e jornalistas, de ambos os sexos, lidam ou lidaram com a homossexualidade e os impactos do machismo na ambiência do futebol. 

Joanna de Assis é jornalista esportiva do Grupo Globo e sempre teve interesse pelo tema desde que se passava por menino para jogar futebol com as crianças da rua onde morava. William De Lucca ganhou notoriedade ao se posicionar contra cantos homofóbicos entoados pela torcida do seu próprio time, o Palmeiras. Ambos coletaram, durante a produção do podcast, depoimentos anônimos e abertos sobre a vivência de pessoas LGBTQIA+ em todas as esferas onde o futebol está presente, desde a base até a aposentadoria. 

Importante antecipar que mesmo sendo um produto do veículo de mídia mais tradicional do país, o tema e o formato escolhidos cacifam o Nos Armários dos Vestiários a ser fruto de recomendação pelo Observatório Marta. Apesar de consideráveis imprecisões de posicionamento de jornalistas e da própria Globo, ao longo dos anos, em relação ao tema — dignos de questionamento e mea-culpa ao longo do podcast — não faltam apontamentos de erros da imprensa como um todo, para além da relação com a homofobia, mas também ao machismo existente no setor e seu papel na perpetuação de estigmas quanto às funções desempenhadas por mulheres e LGBTQIA+ no futebol, como indicado no episódio “O Elefante na Redação”.

Ao longo de 9 episódios, Joanna e William mesclam relatos pessoais e entrevistas de convidados para construir um programa que segue a receita de sucesso dos podcasts que captam a simpatia do ouvinte, se preocupando com a linguagem e reservando à temática o merecido destaque. Por estarem por si só envolvidos com a discussão, cada capítulo parece trazer consigo a experiência dos convidados que, em sintonia com os relatos, entregam reflexões embasadas na vivência real do futebol, em um campo de disputa onde mulheres e LGBTQIA+ nem sempre foram os protagonistas – e quando do contrário, não passavam de chacota e descriminação.

Com média de duração de 50 minutos, os episódios possuem direcionamentos bem estabelecidos e são divididos por subtemas. A escolha da produção tem início nas pautas sobre homofobia dentro dos campos, na experiência dos jogadores profissionais, e avança para as torcidas, arbitragem e futebol de base. A discussão sobre masculinidade também ganha espaço, abrindo brecha para uma mea culpa mediático e a discussão, finalmente, do lugar das mulheres no contexto histórico. 

Há de se constatar que não se trata de uma produção meramente expositiva, apesar do formato em que o conteúdo é distribuído. A reiterada contextualização dos porquês de se levantar pautas silenciadas, explorando primórdios e produtos da sua prática, são preocupações para os jornalistas. Embora envoltos de uma esfera pessoal, onde os sentimentos compartilhados estão estritamente emaranhados com as vivências dos entrevistados, ressalta-se o alcance às suas trajetórias próprias em sintonia com a dos seus ouvintes — ora, todos inclusos em um mesmo sistema —, que parecem acompanhar a discussão construída pelo programa.

Em termos de manejo das informações, os jornalistas demonstram profissionalismo e cuidado, preocupados com a exposição de personagens que até pouco tempo atrás mal tinham suas vozes ouvidas ou se entendiam como tal. Como mencionado anteriormente, parecem atentos em tornar o espaço democrático para discordâncias, a citar o posicionamento do jogador Richarlyson, no primeiro episódio, que ao contrário dos entrevistadores não acredita no efetivo papel social de “sair do armário”, mas que entende a luta e representação como intrínseca a sua própria existência.

A priori, qualquer desavisado que chegou aos episódios por meio da divulgação feita no site globo.com — página de inicio do Grupo Globo na web —, poderia pensar que a produção serviu apenas para “tirar do armário” alguns de seus entrevistados. Cabe justificar e elogiar, porém, o esclarecimento, por parte dos apresentadores, de que os entrevistados só revelavam sua sexualidade quando e se sentissem confortáveis para tal. O ex-jogador e agora comentarista Richarlyson foi o primeiro deles, seguido pelo árbitro dos quadros da FIFA, Igor Benevenuto, e o ex-goleiro do Grêmio, Emerson Ferreti.

Se para o ouvinte masculino as vozes até então apresentadas soam próximas às suas experiências, o podcast esconde um inconveniente que por sua própria justificativa o torna indefensável: põe para escanteio os estigmas do futebol no mundo feminino. Ao reservar um único episódio, dentre os nove totais, para a discussão da invisibilização feminina e as sequelas do machismo no mundo do futebol, o podcast comete uma falha que repete as práticas que denuncia. Embora figuras femininas tenham concedido entrevistas em episódios anteriores, a centralização do tema de modo tardio parece não casar com a proposta do programa. Embora sua elaboração e pauta sejam tão bem construídas, sob a cautela e a prudência que merecem, o detalhe não passa despercebido.

É curioso e vale ressaltar o quão estranho pode soar ao público mais preocupado com os detalhes a abertura com propaganda da Copa do Mundo e a falta de menção ao tema. Não são poucas as denúncias de negligência dos direitos das mulheres e dos LGBTQIA+ no Catar, país sede do maior evento futebolístico do mundo, quando os olhos de todo o mundo se voltam para um só lugar. Embora compreensível o uso do espaço para divulgação de outro produto convencional da mídia, fica uma pulga atrás da orelha sobre a possibilidade de a pauta ter sido somente preterida durante a seleção de temáticas em função do contrato de exibição do evento por parte do Grupo Globo.

Joanna e William/Divulgação

Ao buscar pelas repercussões do projeto na internet, são poucos os resultados de críticas à produção. Ao todo, somente uma entrevista foi encontrada a fim de divulgação do podcast, realizada pela CBN (associada ao Grupo Globo) que distribui as informações pelos canais de rádio de transmissão e disponibilizou a curta entrevista no YouTube. São ferramentas eficientes, mas limitadas. Por despontar quando o assunto é número de ouvintes, a estratégia de divulgação pela própria empresa é notória, mas parece faltar esforços para que a discussão fure a bolha e chegue a novos públicos.

Na entrevista à CBN, que pode ser conferida na página do YouTube, Joana é concisa ao afirmar que o objetivo principal é “fazer a diferença, não só fazer manchete”, mas reconhece que os mecanismos jornalísticos acionados para a elaboração dos programas também levam em conta a atração do público. Destaca-se e reitera-se, portanto, a forte participação do jogador Richarlyson, cuja escolha para compor o quadro de entrevistados no episódio de inauguração não ocorreu por acaso — nem mesmo a decisão por disponibilizar na íntegra a entrevista do jogador ao término da temporada. 

Outros veículos de comunicação, especialmente aqueles não vinculados ao Grupo Globo, trouxeram as discussões sobre o podcast em suas transmissões. Voltadas para outro enfoque, mais preocupados com a “polêmica” do ex-atleta são-paulino do que com a pertinência da temática do “Nos Armários dos Vestiários”, episódios como “Richarlyson ASSUME SER BISSEXUAL, e Vampeta EXALTA o amigo: ‘EU VOU TE FALAR! Ele…’” (sic), produzido e distribuído pela Jovem Pan, parecem preocupados em dispor de Richarlyson apenas como bode expiatório de uma discussão em que as respostas já estão dadas, as quais parecem favoráveis aos LGBTQIA+, mas que na verdade acabam negligenciando muitas das dinâmicas da discriminação.  

Um programa construído por 20 pessoas, que narram histórias cujas sequelas são sentidas até o presente, tocando outras pessoas envolvidas no projeto e alcançando o público que as acompanham. Um ambiente democrático em que a todo momento, como relatado por Joanna à CBN, “[os jornalistas] buscam sempre reposicionar e entender os aspectos em construção”, ao estabelecerem paralelos entre o fazer jornalístico e o cuidado com o indivíduo para além dos manuais e protocolos.

Após cada programa, ainda em relato à CBN, Joanna comemora o carinho relatado pelos entrevistados. Familiares, clubes, e outros sujeitos que de certa forma estiveram presentes nas histórias narradas, nem sempre como facilitadores, buscavam-nos após os programas, por meio de ligações, e-mail e até pessoalmente, para demonstrarem carinho, dar forças e/ou reconhecerem seus papéis no que fora relatado. Um movimento importante de reflexão promovida pela produção que talvez não estivesse na pauta, mas pode ser entendida como uma reverberação positiva dos esforços direcionados.

“De tudo que escutamos, só 10% é publicado”, conta Joanna. Outro motivo para se reconhecer o esforço dos jornalistas em preservarem seus convidados, oferecendo-lhes caminhos possíveis durante as gravações a fim de que eles encontrem no estúdio o contrário do que os campos lhes ofereciam no passado; ao invés de julgamentos e pressão para que se assumissem publicamente, nota-se um ambiente de liberdade para exploração de ideias e, sem estar dentro dos resultados esperados, ouvir da boca dos entrevistados — pela primeira vez na carreira para alguns — como se sentem e enxergam na prática esportiva, em suas diversas instâncias. 

Para William as motivações para criação do projeto residem em sua experiência com a homofobia da torcida palmeirense. Joanna foi e é vítima das chagas da masculinidade tóxica e do machismo na prática esportiva. 

“Como mulher no mundo do futebol, tinha essa coisa de querer ser melhor que todo mundo porque eu precisava disso para provar que eu merecia estar naquele lugar, então eu não podia ser uma repórter de fundo de redação mediana, eu tinha que ser muito boa. Eu tinha que trabalhar mais, me dedicar mais.”

Enquanto busca explorar os diversos impactos da maneira com que as leituras de gênero e sexualidade acometem a vivência de mulheres e pessoas LGBTQIA+ no futebol, o podcast reproduz, talvez de forma inconsciente, preceitos que não chegam a diminuir o impacto da temática abordada, mas revelam o quão fixados estão esses conceitos no modo com que atletas, torcedores, clubes, agências e mídias especializadas agem. A parcela de ouvintes que de alguma forma foram vítimas dessas dinâmicas talvez consiga perceber detalhes que passariam despercebidos, como a ausência de vozes femininas e o enfoque nas questões de se assumir publicamente ou se reconhecer como símbolo de luta. Detalhes que seriam interessantes de serem analisados em uma eventual segunda temporada do programa.

***Esta crítica foi produzida como atividade da disciplina Laboratório de Comunicação e Esporte ofertada no semestre 2 de 2022 no Departamento de Comunicação Social da UFMG. A disciplina foi ministrada pela Profa. Ana Carolina Vimieiro e pela mestranda Flaviane Eugênio.***

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