Por Elisa Reis Bicalho e Gustavo de Oliveira Souza
Ficha técnica
Título: Meninas de Ouro
Ano de produção: 2016
Direção: Pedro Jorge
Duração: 80 minutos
Classificação: Livre
Gênero: Documentário
Países de Origem: Brasil
O handebol chegou ao Brasil na década de 1930, mas foi apenas em 1971 que se tornou um esporte de abrangência nacional e apenas em 1992 que debutou em edições dos Jogos Olímpicos, com a seleção masculina. A lentidão que pode ser observada na evolução do esporte se relaciona à popularidade do handebol no Brasil: está em 12º lugar entre os esportes mais praticados nacionalmente, o que impacta nos índices de audiência, público e, consequentemente, patrocínio e renovação do esporte brasileiro.
Todas essas dificuldades estruturais, além das culturais e das expectativas, são mostradas no documentário “Meninas de Ouro”, que acompanha a seleção brasileira feminina de handebol durante duas décadas, desde a conquista do primeiro Pan-Americano, até a vitória no Campeonato Mundial em 2013.
TRAJETÓRIA E DIFICULDADES
O título mundial de 2013 é considerado o ápice da seleção feminina de handebol, mas por trás desse momento de glória existe um caminho longo que foi percorrido, começando pelo título pan-americano de 1999. Entre essas duas conquistas, em um período de 14 anos, muita coisa se transformou.
Zezé Sales, Lucila Vianna, Idalina Mesquita e Dilane Roese são algumas das medalhistas de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 1999 em Winnipeg, Canadá. Que após vencerem a seleção anfitriã garantiram a classificação para os Jogos Olímpicos de 2000, em Sydney.
Seleção Brasileira Feminina de Handebol comemorando o título Pan-Americano de 1999

Mesmo com excelentes resultados, a situação do esporte naquele momento era precária. O déficit de investimentos e a pouca atenção resultaram em uma falta de estrutura para as atletas e comissão técnica. Viagens longas e cansativas de ônibus, pouco tempo para treinamentos, preparação inadequada e até falta de camisas marcavam o amadorismo existente no topo do handebol feminino brasileiro.
“Nós éramos profissionais, tínhamos o título de profissionais, mas tudo que estava por trás ali era bem no amadorismo, bem no coração mesmo”.
Idalina Mesquita, ex-ponta esquerda e campeã panamericana de 1999
Só em 2004 as coisas começaram a caminhar de forma mais profissional. “Eu acho que a melhora mesmo veio só quatro anos após 2000, que foi de 2003 para 2004. Aí sim que realmente as coisas começaram a andar”, completou Idalina Mesquita.
Já com uma nova geração, a trajetória até o Mundial de 2013 também é marcada por derrotas, a princípio inexplicáveis, porém que refletiram o momento daquela seleção que viria a se sagrar a melhor do mundo.
O Campeonato Mundial de 2011 foi disputado no Brasil. A seleção brasileira feminina começou muito bem a competição, ficando em primeiro lugar no grupo C e passando para as oitavas de final. Nas oitavas, as brasileiras eliminaram a Costa do Marfim por 35 a 22 e foram enfrentar a Espanha nas quartas, país em que a maioria das jogadoras brasileiras atuava. O jogo foi bastante equilibrado, mas a Espanha teve mais sorte e venceu por 27 a 26.
Nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres, o Brasil também começou bem a competição, ficando com o primeiro lugar no grupo A e se classificando para as quartas de final. As adversárias eram as tradicionais norueguesas, que tinham ficado em 4° lugar no grupo B, se classificando na última vaga. O primeiro tempo do confronto terminou com a seleção brasileira na frente, 13 a 9. Porém, no segundo tempo, a Noruega conseguiu reverter o placar e venceu o jogo por 21 a 19. Em seguida, se tornaria a campeã olímpica de 2012.
Além de problemas em diversas áreas ao longo da trajetória da equipe feminina de handebol, como a falta de infraestrutura e investimentos, pouco tempo antes do Campeonato Mundial de 2013, que aconteceria na Sérvia, a seleção brasileira sofreu com muitos problemas de lesão com suas atletas. O primeiro baque foi com Dani Piedade. A atleta sofreu um Acidente Vascular Cerebral um ano antes do Mundial, enquanto treinava no seu clube, na Eslovênia.
“A nossa característica desse grupo, a gente é muito amiga. Mas não é amiga de “hahaha hihihi”, é amiga nos momentos difíceis. A gente sente muito o que acontece com a outra. O que aconteceu com a Dani, para a gente, foi uma pancada muito grande. Até porque você olha para ela e é um monstrinho, um leão. Ninguém disse que essa mulher teve um AVC ou que poderia ter tido um AVC”.
Fabiana Diniz, pivô e capitã campeã do mundo em 2013
Fabiana Diniz, pivô e capitã campeã do mundo em 2013

Semanas antes do Mundial, muitas atletas se apresentaram na seleção brasileira com lesões, oriundas da temporada jogando pelos seus clubes. O trabalho da equipe médica brasileira precisou ser intensificado buscando a recuperação dessas atletas para a estreia no Mundial.
“Quinze dias antes do Mundial, nós não tínhamos atletas para treinar. Das dezesseis atletas, quatorze estavam machucadas. Não foram lesões ali no treino, foram lesões que elas já trouxeram do clube. Então, depois de dois dias de treinos nós não tínhamos atletas para treinar” – Marina Gonçalves, fisioterapeuta e campeã do mundo em 2013
MUDANÇAS DE CENÁRIO
A seleção brasileira feminina de handebol chegava para a disputa do Campeonato Mundial de 2013 com o peso de duas eliminações recentes nas quartas de final, tanto no Mundial de 2011 quanto nas Olimpíadas de 2012. Apesar disso, o Brasil tinha uma seleção muito forte, com grandes jogadoras atuando na Europa. Contando, inclusive, com a vencedora do prêmio de melhor do mundo no ano anterior, a ponta direita Alexandra Nascimento.
Na parte da comissão técnica, também existia uma grande evolução se compararmos com o título Pan-Americano quatorze anos antes. A mudança de paradigma começou em 2005, com a chegada do espanhol Juan Oliver para comandar a seleção. A partir disso, o intercâmbio de atletas brasileiras migrando para equipes européias se intensificou rapidamente. Isso aconteceu em paralelo ao processo tímido de profissionalização do handebol no Brasil.
“Através das nossas conversas com os nossos atletas, a gente percebeu que se a gente quisesse ir um pouquinho mais adiante, a gente teria que nos aproximar mais da Europa. Na sequência nós contratamos o Juan para ser técnico da seleção feminina. E aí, ele já começou a fazer indicações para clubes espanhóis, para que as meninas fossem e os meninos também fossem. Obviamente as mulheres com mais intensidade.” – Manoel Luiz de Oliveira, presidente da Confederação Brasileira de Handebol (CBHB)
O ciclo do treinador espanhol à frente do comando técnico da seleção brasileira feminina durou quatro anos, até as Olimpíadas de Pequim, em 2008. E, após um ano de indefinições, o novo técnico foi escolhido. Se tratava do dinamarquês Morten Soubak, que após deixar o comando técnico do time masculino do Pinheiros, assumiu, em 2009, a seleção feminina do país.
Então, com jogadoras atuando nos melhores clubes do mundo e com um treinador experiente, que estava há quatro anos no cargo apresentando um estilo de jogo bem definido e moderno, a seleção brasileira passou em primeiro lugar do grupo B, com cinco vitórias em cinco jogos, no Campeonato Mundial de 2013, disputado na Sérvia.
Nas oitavas de final, o Brasil enfrentou a Holanda, fez um excelente jogo e venceu com autoridade por 29 a 23, classificando para as quartas e tendo como adversário a Hungria.
“Mais um Mundial, ganhando a chave de grupos, ganhando as oitavas de final contra a Holanda, entrando para uma nova quartas de final em três anos seguidos, em três campeonatos seguidos. Eu acho que eu nem precisava falar nada, antes deste jogo contra a Hungria” – Morten Soubak, técnico e campeão do mundo em 2013
Morten Soubak, técnico e campeão do mundo em 2013

A partida foi muito parelha e disputada, no tempo normal ficou empatado, 26 a 26. Na prorrogação, a seleção brasileira levou a melhor, venceu por 33 a 31, espantou o fantasma das quartas e se classificou para a semifinal. A Dinamarca estava no caminho e era a última barreira até a final. Na semifinal, a seleção brasileira venceu por 27 a 21, superou a Dinamarca e chegou até a final.
A Sérvia, seleção que jogava em casa, foi a outra finalista. Mesmo com toda a torcida contra, a seleção brasileira fez uma ótima partida, controlou o nervosismo, a pressão, o medo e venceu por 22 a 20. Conquistou a medalha de ouro e trouxe pela primeira vez um título de Campeonato Mundial para o Brasil.
ESPORTE E GÊNERO
Em grande parte dos esportes no Brasil, como no futebol e no basquete, as seleções masculinas têm mais sucesso, prestígio e investimento que as seleções femininas dos mesmos esportes. Isso ocorre como consequência de que os esportes são uma instituição social produzida por pressupostos de gênero, que participam também de suas produções, e, assim, refletem e constroem ideias machistas presentes na sociedade. No handebol, entretanto, a história se inverteu de certo modo, visto que as conquistas da seleção feminina levaram a modalidade a um patamar mais alto antes da masculina, um fato especialmente relevante ao considerar-se que os times masculinos de handebol surgiram primeiro, participaram dos jogos olímpicos primeiro e contavam com mais expectativas de vitória por parte da confederação nacional. Em certo ponto do documentário, inclusive, é feito um comentário dizendo exatamente isso sobre o que era esperado da seleção feminina, apesar da enorme superioridade técnica quando comparada ao time masculino.
“E você fica esperando que até pelo machismo vigente no país, como há um esforço muito grande da confederação de handebol de fazer duas equipes competitivas, a dos homens e a das mulheres, a expectativa da gente era que os homens fossem conseguir resultados antes, e não foi por aí.” (KFOURI, Juca)
Seleção Brasileira Feminina de Handebol nas Olimpíadas de Londres em 2012

Apesar de ter sido a seleção masculina a primeira a participar de uma olimpíada, o documentário mostra que foi a seleção feminina a primeira a vencer um campeonato Pan Americano e se classificar por mérito próprio. Foi a seleção feminina a primeira a conquistar um prêmio de melhor jogadora do mundo, com Alexandra Nascimento, e a primeira a conquistar um título mundial. Assim, conclui-se que o handebol brasileiro encontrou um cenário de sucesso dentro da modalidade feminina. Entretanto, é importante pontuar que exatamente essa popularidade entre as mulheres e baixa relevância do handebol masculino pode ser responsável por um dos principais problemas da modalidade: a falta de profissionalização.
Dentro do documentário, é mencionado pelas jogadoras que a precarização e falta de investimento na seleção era tanta, que não havia camisas suficientes para treino. Da mesma forma, é mencionado como as jogadoras, além de jogarem, precisavam estudar e trabalhar para se manter, visto que o salário de atleta nem mesmo era fixo. O handebol brasileiro feminino só começou a despontar quando as atletas começaram a jogar e, consequentemente, se desenvolverem enquanto atletas na Europa, que conta com muito mais estrutura e investimento em comparação ao Brasil, que não investe nem de perto o mesmo que no futebol ou vôlei, esportes em que o time masculino se destacou primeiro que o feminino, o que fez com que os esportes fossem levados muito mais a sério.
No caso do handebol, segundo uma pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a prática se tornou uma atividade típica da cultura escolar, na medida em que é praticado fundamentalmente nas aulas de Educação Física, e principalmente pelas meninas. Desse modo, influenciado também pelo baixo interesse vindo do público masculino, a modalidade encontra dificuldade para ultrapassar o nível escolar e chegar até o nível de clubes com a estrutura necessária para formar seleções de ponta. Como consequência, o nível profissional reflete o nível escolar no que tange a prática feminina e masculina, e a modalidade feminina enfrenta mais barreiras como a da falta de investimento como consequência da falta de interesse de esportes que são vistos como femininos.
Dentro desse contexto também, outro problema que surge é a falta de renovação das atletas dentro do esporte, problema muito citado no documentário. Isso se dá também pelo fato de que apesar de ser muito praticado e preferido pelas meninas em idade escolar, com 81% das meninas demonstrando interesse pelo handebol segundo estudo de Teixeira e Myotin (2001), as meninas relatam que não praticam o esporte fora da escola.
Desse modo, como também indicado pela mesma pesquisa, os resultados sugerem que os professores de Educação Física continuam diferenciando o conteúdo de ensino-aprendizagem por sexo, independentemente das turmas serem mistas ou não. Além disso, também é inferido a partir dos índices de aprovação do handebol pelas meninas, que são muito mais altos que da prática de dança ou ginástica, que quando é dada às mulheres oportunidade de experimentar diferentes esportes e modalidades que aquelas tipicamente associadas ao corpo feminino e as estéticas de limitação de graciosidade e beleza, o interesse é muito alto.
A discussão sobre os tipos de corpo que praticam cada esporte e a visão tida do handebol no Brasil retorna quando no documentário são feitos comentários destacando a beleza da prática do handebol feminino, de forma que não ocorre com o esporte masculino, desvalorizando e limitando o sucesso das jogadoras a sua aparência jogando. Desse modo, por conta das convenções de gênero presentes na sociedade, pode-se concluir que o esporte masculino é na maior parte das vezes caracterizado por virilidade, qualidade esportiva, e colocado como superior, enquanto o feminino é reduzido a beleza e performance, e recebido com desconfiança em relação à sua qualidade.
Alexandra Nascimento, eleita melhor jogadora do mundo em 2012

“O esporte unificou um conjunto de valores como força, potência, velocidade, vigor físico, busca de limites, características valorizadas na sociedade e historicamente associadas a imagem da masculinidade (…), fazendo com que o comportamento esportivo seja definido como um papel de gênero masculino”. (DEVIDE, 2005, p. 42)
Em adição a esse cenário, o documentário aborda mais um aspecto que pode ser relacionado a construções culturais de feminilidade e masculinidade: A estrutura emocional e o preparo psicológico das atletas da seleção. Diversas vezes ao longo do filme são feitos comentários como “nós somos muito emotivas” entre outros que reforçam essa ideia de fragilidade frequentemente ligada às mulheres. Além disso, um dos pontos de virada que foi citado pela seleção nas entrevistas foi a contratação de uma psicóloga, com o objetivo de solucionar o maior problema que disseram ter sido identificado pela comissão técnica: despreparo emocional diante de derrotas e até mesmo dificuldade de controle em vitórias, o que novamente coloca as mulheres dentro da imagem de fraqueza e capacidade inferior por não conseguirem controlar as emoções.
Alessandra Dutra, Psicóloga da seleção feminina de handebol na conquista do mundial de 2013

Apesar dos desafios resultantes do machismo no esporte, entretanto, é essencial reconhecer a importância da seleção brasileira de handebol feminino na ressignificação do que é o próprio esporte feminino e as representações de mulheres nesse contexto. A presença e ações das jogadoras no esporte ao longo de toda a jornada da seleção desde antes da conquista do Pan Americano de 1999 até a conquista do mundial em 2013 se tornaram referência para as futuras gerações e permitiu que a equipe se desenvolvesse e atingisse o patamar a que chegou. Apesar da maneira como o esporte feminino é colocado na sociedade, dos enquadramentos e visões de beleza e performance enquanto o masculino é enquadrado a luz esportiva, a seleção feminina de handebol subverteu a norma e alcançou o sucesso, mesmo que isso não fosse o esperado dela.
“Portanto, torna-se interessante procurar entender exatamente o que está em jogo quando as mulheres se tornam atletas e, especificamente, atletas profissionais, identificadas com o esporte não só pelo prazer de praticá-lo, mas como forma de ganhar a vida e, ainda mais, participar de uma cultura, anteriormente masculina, que torna o/a atleta um símbolo do sucesso e da cultura nacional. Cabe perguntar em que medida a participação esportiva contribui para uma re-significação da corporalidade feminina, sendo possível também que prevaleça uma apropriação da atividade esportiva que consegue enquadrá-la dentro de padrões de normatividade social que reproduzem o controle (masculino, ou masculinista) sobre os corpos das mulheres”. (Adelman, 2003)
Seleção Brasileira Feminina de Handebol no pódio após conquistar o campeonato mundial em 2013

REFERÊNCIAS
ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 445-465, dez. 2003
MENINAS de Ouro. Direção de Pedro Jorge. Brasil: Saravá Filmes, 2016. (79 min)
Lima da Silva, Nadia; Santos Ferreira, Marcos; Cerqueira Pasko, Vanessa; Guerra de Resende, Helder A Prática do Handebol na Cultura Físico-Esportiva de Escolares do Rio de Janeiro Movimento, vol. 17, núm. 4, octubre-diciembre, 2011, pp. 123-143.
***Esta crítica foi produzida como atividade da disciplina Laboratório de Comunicação e Esporte ofertada no semestre 2 de 2022 no Departamento de Comunicação Social da UFMG. A disciplina foi ministrada pela Profa. Ana Carolina Vimieiro e pela mestranda Flaviane Eugênio.***