Análise de Campanha: #DeixaElaTrabalhar e as jornalistas esportivas contra o assédio

por Daniel Vieira, Glaucy Helena, Larissa Loureiro e Leonardo do Prado Moreno

Ficha técnica

Campanha: #DeixaElaTrabalhar
Ano de lançamento: 2018
Agência/Criação:
Produto: Vídeo
Marca: 

A campanha #Deixaelatrabalhar é um manifesto contra o assédio e o machismo sofrido pelas jornalistas esportivas no trabalho durante as transmissões, e por trás das câmeras, envolvendo um grupo de aproximadamente 50 mulheres profissionais do jornalismo no Brasil, que publicaram a campanha junto com um vídeo, contendo alguns dos relatos sofridos.

O vídeo publicado na rede social Twitter, no dia 25 de março de 2018, conta com diversas jornalistas manifestando repúdio às violências sofridas e exigindo respeito. As imagens são combinadas com cenas da repórter Bruna Dealtry, do canal Esporte Interativo, sendo beijada à força por um torcedor durante uma transmissão ao vivo do jogo entre Vasco e Universidad do Chile, pela Libertadores. Apesar de constrangida e pelo assédio sofrido, Dealtry seguiu com a transmissão. O vídeo também contém cenas de outro momento de violência, ocorrida em Porto Alegre, no qual um torcedor do Internacional insultou a repórter Renata Medeiros, da Rádio Gaúcha, que estava cobrindo a partida entre Grêmio e Internacional, dizendo “Sai daqui, sua puta” e a agredindo fisicamente.

Imagem: Reprodução/ Twitter. Disponível em: https://bit.ly/3o3bq7D

Bibiana Bolson, jornalista da ESPN e uma das participantes da campanha, contou para o jornal El País que o objetivo é chamar atenção para a violência sofrida dentro e fora dos estádios pelas jornalistas, como forma de resposta aos assédios e as situações que as profissionais Dealtry e Medeiros passaram, que refletem a experiência de várias comunicadoras esportivas. Bolson ressalta que, embora a campanha seja feita por jornalistas esportivas, a mensagem tem o intuito de dar voz a todas as mulheres, independentemente do seu setor profissional, de maneira a incentivá-las a relatarem os abusos que sofrem e a buscar espaço. Ademais, o vídeo manifesto inclui a recordação de que o silêncio diante dos casos de assédio também faz parte do problema, como aponta uma das jornalistas: “A omissão também machuca“.

Na época, diversos clubes de futebol retuitaram o vídeo em suas contas no Twitter, como o Atlético Mineiro, Cruzeiro, Atlético Goianiense, Fluminense, Esporte Clube Bahia, Botafogo, entre outros. 

Imagem: Reprodução/ Twitter. Disponível em: https://bit.ly/3aCuRBg.

Os clubes também utilizaram o Dia Internacional das Mulheres para retornar a pauta com algumas ações em campo e nas redes sociais, mas como comumente vemos atualmente, a maioria dessas condutas ficam isoladas a data. 

Imagem: Reprodução/ Twitter. Disponível em: https://bit.ly/3P7Ak1Z.

Tomamos em consideração toda a campanha e o que ocorreu previamente para que ela acontecesse, também analisamos um conjunto de possíveis “justificativas” para os episódios de assédio. No estudo “As narrativas sobre o futebol feminino”, as autoras buscam analisar as narrativas feitas pela mídia impressa durante o período de 1930 a 2000, e como ocorre a veiculação da representação do futebol feminino. Com esse estudo, algumas hipóteses são levantadas para justificar o modo como ocorre essas práticas comunicacionais, sendo que duas delas podem ser estendidas também para abordar a forma como as mulheres profissionais de jornalismo no esporte são tratadas e, infelizmente, desrespeitadas. 

Uma das hipóteses apresentadas por Ludmila Mourão e Márcia Morel é a própria forma como a mulher é enxergada no esporte. Em suas análises, foi pontuado sobre como nas reportagens das décadas de 30 as mulheres jogadoras eram tidas como divertimento para o público, sendo algo caricato de assistir. Anos mais tarde, em 1965, o Conselho Nacional de Desportos deliberou instruções às entidades desportivas do país sobre a prática de esporte pelas mulheres, como a não permissão de atividades de luta e futebol, reforçando assim a distinção entre o que poderia ser praticado por homens e mulheres, além de fortificar seus respectivos estereótipos. 

Esses são alguns exemplos que demonstram como a invalidação da mulher nos esportes tidos como masculinos é algo recorrente, muitas vezes ocorrendo através do desrespeito e da ridicularização, além de tentar impor uma padrão de feminilidade. Isso porque a mulher é vista de certa forma como “intrusa”, principalmente em relação ao futebol, o qual se tornou um identitário masculino, assim como afirmam as autoras: 

A construção cultural brasileira concebe o esporte, e especialmente o futebol, como um espaço de práticas sociais masculinas através da sua história. E o futebol como uma prática esportiva identitária da construção deste masculino terminou por concentrar uma resistência, ainda maior do que os outros esportes, à prática feminina.

Mourão e Morel, 2005

É importante construirmos esse panorama para entender como essa linguagem estereotipada e inviabilizadora nas mídias, também se estende para fora dos campos e vem sendo vista pelas mulheres jornalistas esportivas. Já que pelos assédios e desrespeitos associados é possível perceber que a mulher durante seu trabalho é vista como algo para entreter, para fazer brincadeiras e assim ser inviabilizada de sua posição. Além disso, também podemos associar o desrespeito a essas jornalistas, como uma ação que fortifique a ideia errônea de que ela está em um local que não lhe pertence. 

Outra hipótese trazida pelas autoras é em relação ao que elas denominam como movimento “sanfona”, o qual acontece “quando o contexto parece representar uma condição de estabilidade, permanência e manutenção na mídia e nos campos, observa-se de forma dinâmica uma retração desta prática.” (MOURÃO & MOREL, 2005, p. 75) 

Essa hipótese pode ser relacionada à própria inserção dessas jornalistas no mercado, um acontecimento que vem ocorrendo de forma gradativa. Temos atualmente que apenas 13% dos profissionais que aparecem na frente da tela são mulheres, segundo uma matéria divulgada pelo UOL. Embora tenha esse baixo percentual, sabemos que essas poucas mulheres no jornalismo esportivo começaram a ganhar mais espaço nos últimos anos. Porém, assim como o movimento “sanfona” apresentado pelas autoras, esse fato acarretou uma onda de críticas e desrespeitos sofridos pelas jornalistas, as quais tiveram muitas vezes que provar e validar seu conhecimento.

Refletindo sobre as hipóteses mencionadas anteriormente e no entrelaçamentos delas com a campanha, voltamos nosso olhar para diversos jornalistas de programas televisivos do nicho “comentaristas de esportes”, antes da campanha iniciar, que encaravam os atos escancarados de misoginia como meras brincadeiras e fenômenos normais, tornando, assim, o assédio uma prática naturalizada. Tal situação pode também ser olhada pela ótica de Saffioti que apresenta a seguinte reflexão:

“O patriarcado pode ser compreendido como o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens. Como qualquer conceito social, está em constante transformação, mas ainda há traços do patriarcado em diversas situações, como nas atitudes masculinas violentas quando as parceiras terminam seus relacionamentos ou mesmo quando a própria sociedade levanta acusações falsas e julgam o caráter das vítimas de violências de gênero, buscando justificar a conduta criminosa dos homens”.

Saffioti, 2011, p. 47

Além disso, Messerschmidt (1993) explora como a masculinidade é uma resposta comportamental a uma situação particular e, desta forma, um mesmo homem pode participar de uma variedade de masculinidades dependendo do contexto. Sendo assim, podemos perceber como todos os episódios de assédios podem ser interligados por uma mesma motivação social: uma provação única e estimulada por demarcar poder e agrupamento de seu indivíduo com o seu coletivo por meio do machismo. É perceptível que homens, no cenário dos esportes, sempre esboçam condutas mais extravagantes e permitidas dentro do seu coletivo, visando sucumbir qualquer traço de feminilidade, logo, realizam e verbalizam ações de assédio e machismo para amedrontar mulheres e provarem que são “homens de verdade”. Não é atoa que em grande parte dos episódios existe algum colega masculino na retaguarda para apoiar ou contribuir com a difamação das repórteres.

Reforçando ainda mais a ideia de que o ambiente reforça e estimula dados comportamentais, temos a consciência de que “o estádio de futebol é um contexto cultural específico que institucionaliza práticas, ensina, produz e representa masculinidades.” (BANDEIRA, SEFFNER, 2013, p. 247). Logo, há um sistema retroalimentativo do qual um ato estimula outros e, assim por diante, promovendo e desencadeando um reforço das estruturas ali presentes.

Imagem: Reprodução/ Twitter. Disponível em: https://bit.ly/3RzIRME.

Por fim, também podemos trazer para agregar a discussão o texto Pós-Feminismo e Cultura Popular de Angela McRobbie. O video deixa explícito que a logica pós-feminista de que a liberdade da mulher é algo que cabe apenas a ela enquanto individuo é uma pontuação equivocada, visto que apesar dos seus esforços lidos como individuais terem às levado a posições de destaque, muito ainda deve ser mudado para que elas consigam exercer suas funções com total dignidade. 

Desse modo, as cenas de assédio apresentadas demonstram que, por mais que as mulheres em questão tenham alcançado posições antes ocupadas exclusivamente por homens, ainda há indícios explícitos de desigualdade de gênero, demonstrando o quão hostis esses espaços ainda são a esses corpos.

Inevitavelmente, isto significa que se trata mais de um ‘ela’ problemático e não um problemático ‘nós’, o que é um indicativo de uma virada para o que nós podemos descrever como a política emergente do questionamento pós-feminista (MCROBBIE, 2016, p. 60)

Outro aspecto que cabe ser discutido a respeito da campanha é que ela não tem indício de atender a uma marca, sendo um manifesto em si, sem grandes produções, mas sim falas sinceras e fatos reais. Quando as jornalistas unem suas dores de forma sincera, gerando um ideia de união de vozes, podemos ver que é um ato que vai contra a corrente, em certa medida, da ideia de individualização feminina, trabalhado por McRobbie.

Bauman lamenta a absoluta inviabilidade da individualização à medida que as fontes de socialidade (e bem-estar) são dizimadas, levando o indivíduo a auto-punição quando o sucesso lhes escapa das mãos (É também possível traçar uma linha política entre estes autores com Bauman e Rose à esquerda e Giddens e Beck para além da esquerda e da direita) (MCROBBIE, 2006, p.64).

A individualização feminina converge com a ideia de que a mulher conquista a sua liberdade pelos próprios esforços e, caso fracasse, seria culpa dela, mesmo que isso não esteja sendo colocado de forma evidente pela sociedade e cultura. Desse modo, a união que o vídeo traz possui alto impacto por ir em uma direção mais coletiva e até mesmo estrutural, de modo a trazer questionamentos pertinentes e urgentes ao ambiente presente no futebol.

Concluindo, tendo como base, a forma como o esporte foi culturalmente construído no Brasil, com ênfase no futebol, no qual se concebe um espaço que institucionaliza práticas, ensina e produz um padrão do que seria ser masculino, cujo futebol apresenta uma resistência ainda maior que os demais esportes à prática feminina, o vídeo manifesto prova que, ao contrário do que se aponta na teoria da individualização feminina, as mulheres não alcançam as posições que desejam somente com a força do querer. 

Além disso, o assédio e o desrespeito sofrido pelas jornalistas reforçam a ideia de que a mulher é vista como entretenimento, ao ser alvo de brincadeiras e assim ser inviabilizada de sua posição. E quando observamos que tal comportamento violento também pode ser visto como uma ação que fortifica o pensamento de aquele lugar não lhe pertencer, força as mulheres a validarem seu conhecimento para ocupar um cargo no campo esportivo, assim como discutido no efeito “sanfona”. Portanto, todas essas violências são uma provação única e estimulada pelos homens com objetivo de demarcar poder e agrupamento de si enquanto indivíduo, com seu coletivo por meio do machismo.

Referências

#DEIXAELATRABALHAR. #deixaelatrabalhar. 25 de março de 2018. Twitter: @deixaelatrab. Disponível em: https://bit.ly/3yENhco. Acesso em: 27 jun. 2022.

ROSSI, Marina. #DeixaElaTrabalhar: a nova investida de mulheres jornalistas contra o machismo: Campanha encabeçada por repórteres esportivas joga luz sobre a questão do assédio e machismo nos estádios e fora deles. El País, São Paulo, 25 mar. 2018. Brasil. Disponível em: https://bit.ly/3RCpJh9. Acesso em: 27 jun. 2022.

GLOBOESPORTE.COM (São Paulo). #DeixaElaTrabalhar: jornalistas lançam manifesto em defesa do trabalho das mulheres no esporte: Veja vídeo do movimento que luta contra o assédio moral e sexual; vários clubes já aderiram à causa. Globo Esporte, São Paulo, 25 mar. 2018. Futebol, p. 1-1. Disponível em: https://bit.ly/3uPUAwG. Acesso em: 27 jun. 2022.

MESSERSCHMIDT, J. W. (1993). Masculinities and crime: Critique and reconceptualization of theory. Lanham, MD: Rowman & Littlefield.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2ºed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia impressa em campo. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v. 26, n. 2, p. 73-86, 2005.

CURRAN, James; MORLEY, David. Media and Cultural Theory. London/New York: Routlege, 2006, p. 59-69. Tradução: Márcia Rejane Messa

***Esta análise foi produzida como atividade da disciplina Mídia, Esporte e Gênero ofertada no semestre 1 de 2022 no Departamento de Comunicação Social da UFMG. A disciplina foi ministrada pela Profa Ana Carolina Vimieiro, pela doutoranda Olívia Pilar e pela mestranda Flaviane Eugênio.***

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