Por Felipe Silva Alvares, Gabriela Ribeiro de Almeida, Gustavo Bonfim, Izabella Figueiredo Malard Marchese e Valter Saldanha de Souza
Ficha técnica:
Campanha: Doe Seu Clichê
Ano de lançamento: 2022
Agência/Criação: –
Produto: –
Marca: Guaraná Antarctica
É tido como uma ideia já consolidada no senso comum que o brasileiro é apaixonado por futebol, sendo inclusive uma forte associação que os estrangeiros fazem quando querem se referir ao nosso país e aos seus habitantes. Para eles, o Brasil é um lugar tropical e carnavalesco, em que todo brasileiro sabe jogar futebol e sambar, como descrito na letra da música “País Tropical”.
A partir disso, Guaraná Antarctica, como marca genuinamente brasileira, não poderia deixar de associar seu produto com um grande símbolo nacional: o futebol. De acordo com seu site oficial, o Guaraná Antarctica é patrocinador oficial das seleções feminina e masculina de futebol desde 2002 — segundo acordo assinado pela Ambev (detentora da marca) com a CBF.
Mesmo após 17 anos apoiando ambas as seleções e depois de diversas campanhas envolvendo jogadores homens desde o início, a primeira ação da marca em apoio midiático ao futebol feminino só foi lançada em 2019. Esta foi promovida pela AlmapBBDO, com a campanha “#CoisaNossa”, na qual uma série de vídeos com cenas das jogadoras da seleção brasileira de futebol foram gravados. Na ocasião, acontecia a Copa do Mundo de futebol feminino na França, que historicamente possui muito menos engajamento e apoio popular do que a Copa do Mundo de futebol masculino, o que se tornou tema principal da campanha ao declarar apoio ao esporte feminino.
Como premissa de que as jogadoras são capazes de seguir o roteiro de uma propaganda e executar ações para comerciais, a marca assume um discurso que questiona a ausência dessas protagonistas nas publicidades convencionais de grandes empresas que, sempre que é conveniente, oferecem destaque para os jogadores de futebol do gênero masculino.
Três nomes de destaque apareceram nas peças: a atacante Cristiane, a meia Andressinha e a lateral-direita Fabi Simões. Mais de 15 marcas apoiaram a ação e o valor arrecadado foi dividido entre as jogadoras e um projeto sem fins lucrativos que incentiva e conecta mulheres que querem se tornar jogadoras em todo o território nacional, o “Joga Miga”. Também foi veiculado o texto “Guaraná ainda não tinha feito nenhum comercial com as jogadoras da seleção feminina. Isso muda agora. Afinal, se é coisa nossa ter orgulho da seleção, isso tem que valer pra todas, né? O futebol feminino merece mais propaganda” em conjunto com os vídeos.
Cristiane segura uma latinha de Guaraná para a campanha #CoisaNossa em vídeo veiculado no canal do YouTube oficial da marca
Dando continuidade às campanhas de apoio, em 2019/2020, foi ano da “Marca na Lata”, na qual o Guaraná fez um convite às outras marcas a apoiar abertamente o futebol feminino em troca de terem seus logotipos estampados nas latinhas do refrigerante. Também foi reforçado seu amparo ao projeto “Meninas em Campo”, criado em 2016 para oferecer treinos de futebol para meninas entre 9 e 17 anos.
Marcas que aderiram à campanha estampam latinhas de Guaraná Antarctica
Já em 2021, foi vez de apoiar o movimento “#Presanos80”, criado para dar visibilidade e reforçar a importância do investimento no futebol feminino. O movimento começou com as atletas, que retomaram a perspectiva histórica de que as mulheres foram proibidas de entrar em campo por mais de 40 anos. Foi apenas em 1983 que o futebol feminino foi regulamentado no Brasil, mas mesmo assim, muita coisa ainda não mudou para que ele tivesse a valorização que merece. A ideia foi incentivar o investimento na modalidade e trazer visibilidade para a prática do esporte por mulheres.
Embalagem comemorativa #Presanos80
A ação consistiu no lançamento de uma garrafa comemorativa inspirada nos anos 80, que foi comercializada e teve as vendas revertidas em investimento no futebol feminino. Mais uma vez, o apoio da campanha foi destinado à iniciativa Meninas em Campo, no qual o valor arrecadado pela marca foi multiplicado por três e direcionado à ONG.
Nesse mesmo ano, a marca também promoveu a ação “Valeu aí, Haters”, na qual imprimiu tuítes de ódio ao futebol feminino em folhas de papel semente, plantados para virar gramado no Projeto Meninas em Campo.
Imagem de veiculação online da campanha “Valeu aí, Haters”
As ações voltadas a apoiar o futebol jogado por mulheres não perderam sua frequência na mídia e foi vez de lançar um mote ainda mais arriscado. A campanha “Doe Seu Clichê” misturou o incentivo à prática do esporte feminino com uma provocação: a forma com que os homens parabenizam as mulheres no dia 08 de março. A premissa da campanha estava em unir dois conceitos principais, o primeiro era de que o Dia Internacional das Mulheres se tornou uma data associada muitas vezes a presentes considerados “bregas” e também à ideia de que através das redes sociais o apoio do público já é o suficiente para mobilizar grandes mudanças no cenário do futebol feminino.
A ideia do clichê diz respeito ao questionamento sobre a escolha que é feita para presentear ou parabenizar as mulheres em seus dias comemorativos. As escolhas de presentes ou de palavras “óbvias” reforçam o estereótipo de que todas as mulheres são ou deveriam ser super sensíveis, delicadas e focadas apenas na qualidade de vida familiar. Também seria considerado clichês, as escolhas de palavras como “flor”, “a mulher que cuida de mim”, “parabéns por ser linda”, entre outras.
Na campanha há um pedido para que algo relevante seja feito em prol de mudanças. Portanto, o Guaraná se propôs a doar R$50,00 para cada compartilhamento de mensagem, utilizando a hashtag da campanha, que tivesse algum clichê recebido por mulheres no dia 08 de março. Dessa forma, a marca buscou transformar o presente “batido” e de pouca aplicação em algo que realmente as impactaria de forma positiva.
Postagem no perfil do Guaraná Antártica, anunciando a #DoeSeuClichê
Na postagem do Instagram foram mais de 28.800 curtidas e 678 comentários. Foi feita apenas uma postagem em cada rede social — Instagram, Facebook e Twitter. No Facebook foram mais de 20 mil reações, 241 comentários e 105 compartilhamentos. No Twitter foram 107 retweets, 177 tweets com comentários e 674 curtidas, com texto diferente, com a mesma mensagem, porém mais descontraído.
Procuramos também por publicações em que há o uso da hashtag fora das publicações dos perfis oficiais do Guaraná Antártica. Para a análise, foi procurada a hashtag com a utilização do acento circunflexo e sem o acento (#DoeSeuClichê e #DoeSeuCliche). No total, foram 11 publicações no Instagram e Facebook.
A campanha colocou um limite de R$50.000 de doação máxima que a empresa poderia fazer, a depender da quantidade de vezes em que a hashtag foi utilizada. O limite imposto é um resguardo para a empresa promotora de que, caso a hashtag fosse utilizada mais vezes que o previsto, o valor direcionado para a ação não seria superior ao esperado.
Mesmo sendo uma regra coerente e até mesmo esperada, nota-se com clareza a intenção que a empresa tem com a campanha. Considerando que o número de vezes que a hashtag foi usada determinou a quantidade de dinheiro a ser doado, mas o valor é limitado, é nítida a intenção de buscar engajamento para a própria empresa. O uso da hashtag beneficia a empresa, que ganha visibilidade positiva ao ser relacionada com uma ação de cunho social, tanto nas publicações em redes sociais, quanto em matérias jornalísticas sobre a ação. As redistribuições do conteúdo publicitário foram feitas em Twitter, Facebook e Instagram.
Divulgação da campanha no Twitter oficial do Guaraná

E dessa forma, a campanha Doe Seu Clichê é um ótimo ponto de partida para discutirmos a relação entre mídia, gênero e esporte, uma vez que busca trazer à tona os desafios que as mulheres enfrentam no meio esportivo com um recorte de gênero. Para essa discussão, nos baseamos em quatro conceitos: feminilidades, masculinidades, corporalidades e sexualidades.
Sabemos que masculinidades e feminilidades são construções culturais que determinam estereótipos de gênero, isto é, ideais de comportamento e aparência física que ditam como uma mulher e um homem devem ser. Além disso, existe também uma relação de ordenação de gênero que pressupõe que a mulher não pode acessar os mesmos espaços que o homem, limitando ao padrão hegemônico (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013) que lhe foi designado.
Trazendo essa ancoragem teórica para a campanha da marca Guaraná, é preciso dizer que os pressupostos de gênero não ficam de fora da quadra, nem do estádio, nem da piscina. O esporte é também uma instituição social e, portanto, está inserida nesse contexto de hierarquias e estereótipos que determinam o que pode ou não um sujeito feminino.
É interessante ver como a marca busca fortalecer a ressignificação dos padrões de gênero. Há algum tempo, uma mulher praticar esportes era algo não hegemônico e, por mais que já seja mais aceito hoje em dia, ainda depende do tipo de esporte e precisa de mais visibilidade e apoio. É nesse cenário que a marca vem apoiar uma ONG cuja maior pauta é o esporte feminino, como quem diz: o Guaraná acredita que o meio esportivo é um espaço que pode e deve ser ocupado por mulheres também.
A mídia tem um papel fundamental nessa construção, agindo como um importante mediador do imaginário popular. Ou seja, a maneira como feminilidades, masculinidades, sexualidades e corporalidades são representadas na mídia se retroalimentam da forma como a sociedade em geral pensa esses conceitos. A mídia é capaz tanto de refletir e reforçar o estereótipo já consolidado quanto de, aos poucos, ir propondo transgressões e ressignificações.
Nesse sentido, é claro que as representações de gênero perpassam as imagens e discursos produzidos no universo esportivo, como podemos ver na campanha Doe Seu Clichê. À medida em que os ideais de feminilidade e corporalidade iam mudando, desde a mulher vitoriana até a contemporânea, o espaço para o sujeito feminino no esporte foi aumentando e a forma como esse sujeito era representado também.
Por muito tempo, o espaço permitido para uma feminilidade hegemônica dentro do esporte se restringia a práticas esportivas com movimentos mais fluidos e delicados ou que fortalecessem a musculatura do aparelho reprodutivo, como ballet, tênis e natação. Com o passar dos anos, os estereótipos de gênero foram evoluindo e, hoje, na feminilidade contemporânea, já temos um ideal de mulher forte, que possui o corpo definido, contrapondo a delicadeza e fragilidade do ideal vitoriano.
De volta à campanha da Guaraná, a marca questiona o discurso tradicional da feminilidade hegemônica através de uma ação que efetivamente viabilize a presença de mulheres no esporte, mais especificamente, no futebol. Vale ressaltar que essa dificuldade da inserção de mulheres no futebol é resultado de pressupostos de gênero que atribuíam esportes de competição apenas aos homens, conferindo a eles um ideal de masculinidade viril, marcado pelo vigor físico, potência, força, entre outras características que jamais eram idealizadas para sujeitos femininos.
A presença de mulheres no futebol configura, portanto, a transgressão de um ideal de gênero e, mesmo que seja mais aceita hoje em dia, ainda é polêmica. Um ótimo exemplo é o fato de que a sexualidade das jogadoras é frequentemente questionada, unicamente porque elas estão ocupando um espaço associado a uma performance de gênero masculina. Entra na discussão, então, os conceitos de sexualidades e corporalidades, com destaque para os tensionamentos elaborados por Adelman (2003).
Em suma, é notória como essas questões transpassam diversos ambientes culturais e cotidianos. O esporte, juntamente com a mídia, por anos fortaleceu um caminho excludente, preconceituoso e injusto que reafirmava as questões de gênero enraizadas na sociedade. No entanto, ainda que recente, gradual e com muitas barreiras, percebe-se uma tentativa de ressignificar esse passado. As marcas, por sua vez, estão cada dia mais se posicionando e aderindo a valores que de certa forma influenciam o pensar popular. Como contido nessa crítica de mídia, o Guaraná Antártica, mesmo que tardiamente, apresenta bons exemplos de atitudes que geram um grande impacto, para além de suas campanhas, na vida de milhares de brasileiras.
Referências
ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, v. 11, p. 445-465, 2003.
CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013.
***Esta análise foi produzida como atividade da disciplina Mídia, Esporte e Gênero ofertada no semestre 1 de 2022 no Departamento de Comunicação Social da UFMG. A disciplina foi ministrada pela Profa Ana Carolina Vimieiro, pela doutoranda Olívia Pilar e pela mestranda Flaviane Eugênio.***