Crítica de mídia: Como feminicídios de atletas no Quênia são retratados na mídia

Por Maria Eduarda Castro

Em 5 de setembro de 2024, o mundo esportivo foi abalado pela notícia da morte brutal de Rebecca Cheptegei, maratonista ugandesa. Queimada viva por seu ex-namorado, Rebecca tornou-se a terceira atleta de alto desempenho vítima de feminicídio no Quênia nos últimos anos. Antes dela, os casos de Damaris Mutua e Agnes Tirop já haviam evidenciado um padrão alarmante de violência de gênero, mas a cobertura jornalística continua a tratar esses crimes como tragédias isoladas, ignorando as conexões com o machismo estrutural e a cultura esportiva.

A abordagem da mídia sobre feminicídios como o de Rebecca frequentemente limita-se à descrição dos crimes e suas consequências imediatas, deixando de explorar as raízes sociais, culturais e institucionais dessa violência. Uma análise de reportagens da CNN, BBC, G1, Mídia Ninja mostra que, entre os veículos estudados, apenas o Mídia Ninja transcendeu a narrativa comum ao destacar que os assassinatos de atletas são parte de um problema sistêmico que ultrapassa os limites do esporte.

Conheça Rebecca Cheptegei

Rebecca Cheptegei nasceu em Uganda, filha de Joseph e Agnes Cheptegei, sendo a segunda de 13 irmãos. Desde cedo, demonstrou seu talento para o atletismo, e, para se aproximar dos centros de treinamento, mudou-se para o Quênia. Mãe de dois filhos, manteve um relacionamento com Dickson Ndiema Marangach e, além de sua carreira esportiva, foi cabo na Força de Defesa Popular de Uganda e integrante de seu clube de atletismo. Ao longo de sua carreira, Cheptegei se destacou em várias competições internacionais, conquistando vitórias e recordes impressionantes. 

Em 2022, venceu a Maratona de Pádua e ficou em 2º lugar nos 10.000 metros no Campeonato de Uganda, além de estabelecer um recorde nacional de maratona com 2:22:47. No mesmo ano, foi campeã no Campeonato Mundial de Corrida de Montanha e Trilha, realizado em Chiang Mai, Tailândia. Ela também brilhou em competições internacionais, incluindo a Maratona ADNOC de Abu Dhabi, onde terminou em 4º lugar, garantindo sua vaga para representar Uganda nas Olimpíadas de Paris 2024.

Em 2023, Cheptegei continuou sua trajetória de sucesso, conquistando o 2º lugar na Maratona de Florença e o 14º lugar no Campeonato Mundial de Atletismo em Budapeste. No ano seguinte, ela participou dos Jogos Olímpicos de Verão de Paris, competindo na maratona feminina e finalizando em 44º lugar. Sua carreira foi marcada por uma dedicação incansável ao esporte, que a levou a competir no mais alto nível, quebrando barreiras e se tornando um símbolo de força e resiliência.

Rebecca Cheptegei comemorando a conquista na Tailândia, em 2022

Foto: Uganda Athletics Federation

Conheça Agnes Tirop

Agnes Jebet Tirop, nascida em 23 de outubro de 1995, foi uma das mais talentosas corredoras de longa distância do Quênia. Ao longo de sua carreira, Tirop alcançou conquistas notáveis, como as medalhas de bronze nos 10.000 metros nos Campeonatos Mundiais de Atletismo de 2017 e 2019. Em 2015, fez história ao se tornar a segunda atleta mais jovem a conquistar uma medalha de ouro no Campeonato Mundial de Cross Country da IAAF, ficando atrás apenas de Zola Budd. Além disso, no momento de sua morte, em 2021, ela era detentora do recorde mundial na prova de 10 quilômetros feminino, uma conquista que refletia seu extraordinário talento e dedicação ao esporte.

No nível júnior, Tirop também se destacou, conquistando medalhas de bronze no Campeonato Mundial Júnior de Atletismo de 2012 e 2014, além de uma prata no Campeonato Mundial de Cross Country de 2013. No Campeonato Africano de Cross Country, ela ganhou ouro em 2014 e prata em 2012. Sua trajetória precoce e suas vitórias indicavam um futuro brilhante, mas sua vida foi interrompida tragicamente em 2021, deixando um legado que continua a inspirar o atletismo mundial.

Agnes Tirop disputando o Mundial, em 2019, em Doha

Corredora Agnes Tirop, do Quênia, era detentora atual do recorde mundial de corrida de 10 km mais rápida
Foto: Reprodução/CNN

Conheça Damaris Mutua

Damaris Mutua foi uma talentosa corredora queniana, conhecida principalmente por suas conquistas nas provas de longa distância. Em 2010, ela conquistou a medalha de bronze nos 1.000 metros nos Jogos Olímpicos da Juventude em Cingapura, representando seu país com grande habilidade. No entanto, sua melhor temporada ocorreu em 2018, quando obteve os melhores tempos da carreira em duas importantes provas: nos 20 quilômetros, com o tempo de 1 hora, 8 minutos e 28 segundos, o melhor tempo do ano, ao vencer uma corrida em Marrakesh; e na meia-maratona, com 1:11:51, conquistando o segundo lugar em um evento em Moçambique.

Damaris também teve um bom início em 2022, conquistando o segundo lugar no Campeonato Árabe de Cross Country, realizado em fevereiro no Bahrein, e, no início de abril, o terceiro lugar na meia-maratona de Luanda, em Angola. Sua trajetória foi marcada por sua constância e evolução, destacando-se como uma das promissoras atletas do Quênia. Infelizmente, a sua carreira foi tragicamente interrompida, mas seu legado no atletismo permanece, inspirando futuras gerações de corredores.

Damaris Mutua na Meia Maratona Internacional da Paz, em Luanda, em 2022

Foto: TCHACO Sports

Um padrão de omissões e exceções na cobertura midiática

A cobertura das mortes de atletas como Rebecca Cheptegei, Damaris Mutua e Agnes Tirop revela um padrão preocupante na forma como a mídia trata a violência de gênero contra mulheres no esporte. Em matérias de grandes veículos como CNN e BBC, o foco recai sobre os aspectos chocantes dos crimes, mas há uma falha crucial em contextualizá-los dentro do panorama mais amplo dos feminicídios no Quênia e da vulnerabilidade das mulheres em sociedades patriarcais. Essa abordagem fragmentada contribui para silenciar a interconexão entre esses casos e impede uma reflexão crítica sobre o papel do esporte na perpetuação de desigualdades de gênero.

O esporte, enquanto instituição social, frequentemente opera sob as normas das masculinidades hegemônicas, que associam força e sucesso à dominação, desvalorizando feminilidades dissidentes. Nesse contexto, mulheres atletas que desafiam os estereótipos enfrentam uma vulnerabilidade única: seus corpos, enquanto símbolos de resistência e sucesso, tornam-se alvos de violências que refletem as dinâmicas de poder, tanto em suas relações pessoais quanto profissionais.

É neste cenário que a cobertura do Mídia Ninja se destaca. Ao contrário da abordagem superficial das mídias consideradas mainstream, que tratam as mortes dessas atletas como tragédias isoladas, a reportagem do Mídia Ninja as conecta a um padrão mais amplo de feminicídios no Quênia. A análise não apenas narra o crime, mas o insere em uma discussão crítica sobre como o esporte e a sociedade em geral perpetuam uma cultura de violência de gênero. A inclusão de dados da Femicide Count, ONG local que monitora os feminicídios no país, e a conexão entre os casos de Rebecca, Damaris e Agnes ampliam a compreensão de um fenômeno sistêmico, oferecendo uma leitura mais complexa do que a apresentada nas demais coberturas.

Outro ponto relevante na reportagem do Mídia Ninja é a diversificação das fontes. Ao contrário das matérias que se limitam a depoimentos de autoridades e familiares, a reportagem inclui ativistas e especialistas em violência de gênero. A fundadora da Usikimye, Njeri Wa Migwi, por exemplo, denuncia a omissão do governo e a falta de ações concretas para proteger mulheres, especialmente as atletas, de relacionamentos abusivos e da violência doméstica. Essa abordagem amplia o debate, tornando o caso de Rebecca parte de uma questão estrutural, que envolve negligência institucional e silêncio político.

A análise crítica do Mídia Ninja também se estende ao contexto social e político do Quênia. A reportagem não se limita à descrição do crime, mas examina as falhas nas políticas de segurança e no sistema judiciário, além de destacar a reação da sociedade, como os protestos de milhares de mulheres que saíram às ruas para exigir justiça. Esse aspecto, que conecta o caso a um movimento coletivo, é negligenciado nas coberturas da CNN e da BBC, que se concentram exclusivamente na vítima e em sua história pessoal, sem abordar a violência sistêmica e as mobilizações sociais contra ela.

Nas reportagens da mídia mainstream, a violência contra Rebecca é tratada de forma privada, com foco em seu relacionamento com o ex-namorado, sem uma análise crítica sobre as questões de poder, posse e dominação que permeiam essas dinâmicas. As mortes de Agnes Tirop e Damaris Mutua são igualmente limitadas a narrativas de assassinatos individuais, sem considerar o contexto cultural e social que favorece a violência de gênero contra mulheres atletas no Quênia.

A omissão das manifestações locais nas pautas da mídia tradicional reforça um nível adicional de invisibilidade. Os protestos realizados no Quênia não visam apenas homenagear as vítimas, mas denunciar o sistema que legitima a violência e silencia as sobreviventes. Ignorar essas vozes é perder a oportunidade de conectar as lutas locais a um movimento global pela equidade e segurança das mulheres.

Ao naturalizar a violência de gênero como tragédias individuais, a cobertura midiática perpetua estereótipos que sustentam as hierarquias de gênero. O caso de Rebecca Cheptegei, uma mulher que desafiava padrões ao competir em maratonas de alto rendimento, exemplifica como as mulheres continuam sendo alvo de culturas que privilegiam masculinidades dominantes, mesmo em espaços que celebram a superação e o esforço.

O jornalismo tem o poder de ir além da simples reprodução de fatos e contribuir para uma narrativa que questione as estruturas de poder. Reportagens como a do Mídia Ninja demonstram que é possível adotar abordagens mais profundas, que incluam dados sobre a sistematicidade da violência, amplifiquem as vozes de ativistas e sobreviventes, e responsabilizem as instituições negligentes.

Por fim, a resistência narrativa precisa ser interseccional e global. Conectar os feminicídios de atletas no Quênia a um contexto maior de violência de gênero no esporte e na sociedade é essencial para construir novas representações que desafiem as normas patriarcais. Somente ao transformar o imaginário esportivo e as condições concretas de vulnerabilidade das mulheres será possível romper o ciclo de silêncio e invisibilidade que cerca essa questão.

O caso de Rebecca Cheptegei não é apenas mais um exemplo de feminicídio no esporte, também é um chamado urgente para que a mídia reveja suas prioridades. Relatar fatos não basta, é preciso desafiar normas culturais, responsabilizar estruturas de poder e amplificar as vozes de resistência. Assim, o jornalismo poderá cumprir seu papel transformador na luta contra a violência de gênero.

REFERÊNCIAS

ATLETA olímpica ugandesa Rebecca Cheptegei morre dias após ex-namorado atear fogo em seu corpo. G1, 2024. Disponível em: Atleta olímpica ugandesa Rebecca Cheptegei morre dias após ex-namorado atear fogo em seu corpo | Mundo | G1. Acesso em: 23 de nov. 2024.

CRISTINA, Karen. Atleta que disputou Olimpíada de Paris é queimada pelo namorado; estado é grave. CNN Esportes, 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/outros-esportes/atleta-que-disputou-olimpiada-de-paris-e-queimada-pelo-namorado-estado-e-grave/. Acesso em: 23 de nov. 2024.

DAMARIS Muthee Mutua: Murdered runner’s career ‘was picking up’. BBC, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/sport/africa/61175433. Acesso em: 23 de nov. 2024.

GERVÁSIO, Melissa. Caso Rebecca Cheptegei e a onda de feminicídios no Quênia. Mídia Ninja, 2024. Disponível em: https://midianinja.org/caso-rebecca-cheptegei-e-a-onda-de-feminicidios-no-quenia/. Acesso em: 23 de nov. 2024.

KARONEY, Celestine. A atleta olímpica morta após ser incendiada por ex-namorado. BBC News Brasil, 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3w60qwzdylo. Acesso em: 23 de nov. 2024.

KLOSOK, Aleks. Corredora queniana Agnes Tirop é encontrada morta a facadas em casa. CNN, 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/olimpiadas/corredora-queniana-agnes-tirop-e-encontrada-morta-a-facadas-em-casa/. Acesso em: 23 de nov. 2024

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