The Football Aficionado: torcer é para todos, mas não para todas

Por Luiz Henrique Zart (@masporqueluiz)*

FICHA TÉCNICA

Título: The Football Aficionado (Original)
Ano de produção: 2022
Direção: Sharmin Mojtahedzadeh e Paliz Khoshdel
Duração: 87 minutos
Classificação: Sem registro
Gênero: Documentário
País de Origem: Irã

The Football Aficionado, dirigido por Sharmin Mojtahedzadeh e Paliz Khoshdel, é um documentário social em longa-metragem que acompanha a história de Zahra Khoshnavaz, uma jovem iraniana de 27 anos, moradora de Teerã – torcedora apaixonada pelo Persépolis, um dos maiores clubes de futebol da capital, e pela seleção do país. Ela, então, decide desafiar a legislação não escrita, teocrática, que proíbe a presença feminina nos estádios, com uma atitude: passa a disfarçar-se de homem e utilizar as redes sociais como uma ferramenta de engajamento e mobilização social. Inesperadamente, a ação serve como catalisador de um movimento nacional contra a desigualdade de gênero e atrai a atenção da imprensa abrindo espaços de fala para as mulheres. Zahra acaba se tornando um símbolo contra normas culturais opressivas e, com isso, o filme, ajuda a refletir sobre os significados da discriminação de gênero ao tratar de pessoas que, em diferentes lugares, enfrentam a luta por direitos civis. Oferece, portanto, uma possibilidade para pensar nos debates sobre gênero, comunicação e futebol. Desde o lançamento, vale ressaltar, a produção já foi premiada em diversos festivais pelo mundo.

Antes de a bola rolar: um pouco de contexto

Antes de introduzir a história de Zahra, o documentário abre espaço para o contexto do país em que a narrativa se desenrola: Depois da Revolução Iraniana, em 1979, a legislação do país passou a ser ainda mais restritiva em relação à segregação de gênero e à participação das mulheres em diversos espaços da sociedade – tanto de locais públicos, como escolas, universidades e no trabalho, quanto para a realização de certas atividades, como a ida a jogos de futebol. Durante este período, destaca a produção, partidas dos clubes foram interrompidas, situação que permaneceu, com o início da guerra entre Irã e Iraque, até 1981. Foi justamente no começo de outubro daquele ano que foi realizado o último clássico com a permissão de presença de mulheres no estádio.

Depois do fim da guerra, ressalta o filme, ativistas pelos direitos das mulheres lutaram contra a proibição por mais de duas décadas por meio de movimentos civis, sem sucesso. No entanto, isso não impediu que protestantes iranianas combatessem esta violência com ações individuais e coletivas. É neste contexto que, em 2018, um grupo de jovens torcedoras do país asiático dá origem ao movimento As garotas do estádio Azadi, contra a proibição. Curiosamente, a expressão que dá nome à casa da seleção iraniana, construída em meados dos anos 1970 com capacidade para mais de 100 mil pessoas, é liberdade.

Figura 2 – Torcedoras da seleção iraniana

Fonte: IMdB, 2025.

Liberdade de torcer é para todas? Considerações sobre esporte, gênero e o documentário

O documentário aborda uma atmosfera cotidiana da vida de Zahra. O elemento central é a proximidade dela com o futebol e os esforços que faz para estar no estádio de forma clandestina. Entre o receio de ir presa, os gastos consideráveis com maquiagem, bigodes falsos, formas variadas de esconder o busto, além da realização de um procedimento estético para implante de sobrancelhas mais robustas – são inúmeras as tentativas de driblar a revista da segurança antes dos jogos. Um anseio surgido depois de um terremoto no Teerã, em que a protagonista, temendo a morte, se questionou sobre o que gostaria de ter feito ao longo da vida: estar presente em um jogo de futebol em seu país como mulher. A produção dialoga com o conceito disposto por Judith Butler, quando argumenta que o gênero é um elemento definidor de inteligibilidade cultural, considerando que “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca do seu gênero (Butler, 2003, p. 27). Neste sentido, o gênero:

se institui através da repetição estilizada dos atos […] através da estilização do corpo […] como a forma mundana em que gestos e movimentos do corpo, assim como vários tipos de encenações, constituem uma ilusão de um obediente self generificado […] uma façanha performativa na qual o público social mundano – que inclui os atores mesmos – acaba acreditando e encenando de acordo com a crença. Se a base da identidade de gênero é a repetição estilizada dos atos através do tempo […] então as possibilidades de transformação do gênero se encontram nas relações arbitrárias entre os atos, na possibilidade de outras formas de repetição, na quebra ou repetição subversiva desse estilo” (Butler, 1997, p. 402).

É possível compreender, desta forma, que o conceito não pode ser reducionista ou essencialista, apesar de uma tentativa de definição aqui proposta. Acaba por apontar para uma construção não linear e permanente dos sujeitos, em que, por meio de diferentes instituições e elementos culturais, são transmitidas determinadas formas de performar um gênero. Desta maneira, instituições sociais são criadas por pressupostos de gênero e também participam destas mesmas produções.

Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que, dependendo da cultura e da sociedade em que estas compreensões sejam formuladas, há diferentes formas de exercer masculinidades e feminilidades (Bandeira & Seffner, 2013, p. 249). Nas suas formas hegemônicas, a representação “em um dado contexto cultural pode ser pensada como um parâmetro que subordina as demais representações de masculinidades” (Bandeira & Seffner, 2013, p. 249). O corpo é, então, uma “poderosa forma simbólica, uma superfície na qual as normas centrais, as hierarquias e até os comprometimentos metafísicos de uma cultura são inscritos e assim reforçados através da linguagem corporal concreta” (Bordo, 1997, p. 19).

Neste sentido, é pontual perceber, no documentário, que a tentativa de Zahra aciona a performance de uma determinada forma de masculinidade hegemônica – considerando o contexto local – ligada a estruturas institucionais e sociais estabelecidas. Essa ideia é entendida como “um padrão de práticas ([…] coisas feitas, não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade) que possibilitou que a dominação dos homens sobre as mulheres continuasse” (Connell; Messerschmidt, 2013, p. 245). É uma demonstração de que estes padrões de identidade orientam as relações de gênero e aquilo que é lido como aceitável dentro de espaços como um estádio de futebol.

Muito da produção se dá com os documentaristas acompanhando as andanças da protagonista, entre a insistência, a frustração, e a repercussão das tentativas de disfarce registradas nas redes sociais. No campo de treinamento do Persépolis, no Kazemi Stadium, por exemplo, junto de um grupo de torcedoras, ela é impedida de atravessar o portão de entrada. Então, grava um vídeo no Instagram relatando a situação. Depois, debate estratégias como marcar os jogadores e usar hashtags como #wedontgoalone (nós não vamos sozinhas, em tradução livre) antes de tentar assistir a um amistoso entre Irã e Bolívia. Em certa medida, esse posicionamento aponta para o uso da comunicação como um elemento de conscientização e das plataformas como amplificadoras de vozes marginalizadas – especialmente em regimes autoritários em que a liberdade de expressão é limitada.

Figura 3 – Publicação do Instagram de Zahra no Azadi Stadium, em Teerã

Fonte: Captura de tela do documentário feita pelo autor (2025)

Diante dos protestos, provisoriamente, a FIFA determinou o fim do banimento, sob pena de o Irã não poder mais ter o mando das partidas. A intersecção das temáticas não escapa, assim, ao contexto político do país. O documentário traz, então, a fala do Presidente do Irã, Hassan Rohani, destacando a manutenção da lei e da religião do país, e de Mohammad Jafar Montazeri, à época Procurador-Geral do país e figura central na aplicação das leis da República Islâmica, associado à repressão institucional de manifestações e à imposição de normas sociais.

Desta perspectiva, concordando com Bordo (1997, p. 19-20), pontua-se que “nossos princípios políticos conscientes, nossos engajamentos sociais, nossos esforços de mudança podem ser solapados e traídos pela vida de nossos corpos […] o corpo dócil e regulado, colocado a serviço das normas da vida cultural e habituado às mesmas (Bordo, 1997, p. p. 19-20). É a partir da noção de um corpo dócil que tenta-se justificar a restrição de mulheres a um papel exclusivamente doméstico, meigo, disciplinado e submisso com argumentos moralistas, pseudocientíficos (Adelman, 2003; Braun, 2023), ou mesmo a ideia de que a prática ou assistência esportiva seria incompatível com uma pretensa “naturalidade feminina” (Bonfim, 2021).

Em contrapartida, o documentário dá espaço, também, para reflexões como a de Mohsen Ghavarian, Professor de Filosofia Islâmica do Seminário Islâmico de Qom, que questiona: se os espaços dos estádios são considerados antiéticos e ofensivos para as mulheres, por que esse mesmo local é permitido aos homens? O mesmo movimento se dá com uma antiga membra do parlamento do país que aponta para a violência contra as mulheres e a clara discriminação de gênero como ferramentas para atrair votos.

Esta discussão remete à associação entre futebol e identidade nacional atrelados à masculinidade e às barreiras impostas por diversas estruturas de poder – seja ele institucional ou não – em modalidades tradicionalmente praticadas por homens (Nunes, 2022, p. 130). Ao mesmo tempo, é pontual pensar a construção de um espaço urbano que, tomado por uma estrutura patriarcal, determina que lugares podem ser acessados e frequentados por quais pessoas, sobretudo quando, neste caso, se pensa no marcador de gênero (Lefebvre, 2001). Ao insistir na participação de um ritual social coletivo como é o torcer, as mulheres reivindicam, também, o direito à cidadania, e apontam para uma articulação da interseccionalidade, em que as opressões de gênero se cruzam com aspectos ligados à religião, à política e à cultura (Crenshaw, 1991).

O documentário levou mais de dois anos para ser produzido. Por isso, em variados momentos, as cenas têm intervalos de meses entre si. Em um destes casos, Zahra frequenta uma loja de roupas atrás de calças. Para encobrir características que socialmente marcam traços femininos do rosto, além de pintar as bochechas, a personagem corta o cabelo e coloca um bigode falso. Uma postura que destaca a conduta normatizadora de um conceito constituído de feminilidade, com os corpos formados por meio das relações sociais (Adelman, 2003). Na nova tentativa de adentrar o estádio, ela passa pela primeira revista, mas não pela segunda – mesmo alegando ser trans, tem a recusa do funcionário. Em outras oportunidades, conta com a ajuda de desconhecidos para se camuflar, trocar de roupas e despistar os revistadores.

Figura 4 – Zahra torcendo entre os homens no estádio, vestida como um deles

Fonte: IMdB, 2025.

Neste contexto, aponta Nunes (2022, p. 142), o futebol pode ser reconhecido como um “espaço político de disputa por reconhecimento e cidadania”, em que o ato de torcer ou simplesmente estar presente no estádio ganha contornos políticos, sobretudo em locais em que a existência delas em espaços públicos é questionada. Além disso, em estádios, o futebol se revela como um espaço que reforça certos comportamentos e normas de gênero, quando representa, também, uma tentativa de controle dos corpos de mulheres. Situação que ocorre alguns meses depois da ida de Zahra à loja de roupas. Ela e outras cinco mulheres disfarçadas são presas por reagirem ao banimento.

Este acontecimento é seguido de passagens de uma reportagem tratando de Sahar Khodayari, conhecida como Blue Girl – apelido ligado às cores do Esteghal FC, rival do Persépolis. A jovem iraniana se tornou símbolo da luta contra a repressão estatal por, em setembro de 2019, aos 29 anos, tentar entrar no Azadi. Presa e liberada após pagar fiança, descobriu que poderia passar seis meses atrás das grades se insistisse em violar a lei. Ao saber disso, ateou fogo contra o próprio corpo em frente ao Tribunal e morreu dias depois, por conta da gravidade das queimaduras. A morte da Blue Girl gerou comoção mundial, com jogadores de clubes como o Bayern de Munique, da Alemanha, e a Roma, da Itália, a prestar solidariedade. O acontecimento pressionou a FIFA a atuar sobre autoridades iranianas – o que resultou em algumas autorizações limitadas e reacendeu as discussões sobre direitos das mulheres no país.

Zahra, por sua vez, foi julgada um ano e meio após ser detida pela última vez. Condenada a dois meses de prisão, teve a pena convertida ao pagamento de multa. Apesar disso, a postura contrária às proibições vista quando ela se travestia e adentrava um espaço tipicamente masculino segue como um símbolo de reivindicação de espaços historicamente negados, afirmação de identidade e resistência contra opressões de gênero. Neste mesmo sentido, além de propor uma reflexão sobre a cultura torcedora em contextos socialmente hostis, o documentário expõe o futebol como um espaço de disputa simbólica em que torcer, em determinados contextos, é algo para todos, mas não para todas.

REFERÊNCIAS

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*Doutorando (bolsista CNPq) e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJor). Integra a coordenação colegiada da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami), ligada à Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Faz parte dos Grupos de Pesquisa Transverso: Estudos em Jornalismo, Interesse Público e Crítica (UFSC) e JorNaL: Jornalismo, Narrativas e Linguagens (UFOP). Contato: luizhenriquezart@hotmail.com

**Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.