“Não sonhar com futebol foi fundamental para trabalhar com futebol”: Entrevista com Cler Santos

Por Natália Souza Andrade*

Trabalhar com jornalismo esportivo é um sonho para muitas pessoas. Dentre as que conseguem, mulheres negras são a minoria. Cler Santos viveu esse sonho – que não era o dela – ao ser repórter do instituto Galo durante um ano e dois meses e contou sobre a sua vivência nesse ambiente.

O interesse pelo esporte veio desde a infância, quando praticou taekwondo, desenvolvendo um espírito competitivo que a acompanha pela vida. Por influências familiares se apaixonou pelo Clube Atlético Mineiro, mas ao escolher cursar jornalismo, trabalhar com esportes era a sua última opção: “Eu era a única da sala que não queria”. Ainda assim, quando a oportunidade de trabalhar junto ao time do coração apareceu, ela abraçou imediatamente.

Cler foi a segunda repórter negra a trabalhar no Instituto Galo. A primeira foi Carol Teixeira, que hoje atua na TV do clube. Moradora do aglomerado Primeiro de Maio, na Zona Norte de Belo Horizonte, Cler se encantou ao lidar com um outro lado do futebol: seu papel de transformação social.

“Eu consegui conhecer uma outra parte do esporte, que é a parte social dele, como ele transforma a vida das pessoas, traz oportunidades, tira famílias da miséria, vai abrindo caminhos que talvez às vezes o estudo não ia abrir, ou num caminho natural de uma família que não tem acesso às coisas, não ia conseguir chegar”.

“Eu viajei Minas Gerais inteira junto com o instituto, então eu consegui perceber e conhecer nuances, por exemplo, ali no Norte de Minas, que é uma região um pouco mais carente, o esporte é mais do que essencial, ele é o que as pessoas respiram. Por exemplo, os meninos já acordam para bater bola na rua. Não tem café da manhã, mas eu já vou jogar bola, minha fome já é de bola. E aí vem o almoço, para o almoço rapidão, engole a comida, a comida mais simples do mundo e já vai partir de novo para cima de bola. É um acalanto que eles têm. Muitos outros, por exemplo, não têm acesso à escola, então vem vindo agora na capital, por exemplo, os projetos incentivadores que tem a ver com o futebol, geralmente para afastar os meninos do mundo do crime, para que eles não vejam isso como opção.”

A repórter tem como um dos principais orgulhos e fontes de autoestima seu cabelo, que sempre alterna entre penteados que valorizam suas raízes, e que por vezes, foram motivos de questionamentos e de discriminação.

“Já aconteceram comentários, a maioria deles sempre com relação ao meu cabelo, que é black power, né? Crespo e tudo mais, eu gosto de usá-lo sem definição com bastante volume. Então muita gente me perguntava tipo: “Ai, seu chefe não liga, como se ele tivesse que ligar pro jeito que tá o meu cabelo Ninguém pergunta uma mulher loira com mechas e do cabelo liso se o chefe dela liga dela fazer mechas, mas sempre me perguntavam se ligavam de eu fazer trança, se ligavam de eu usar meu cabelo black, o que pelo contrário, sempre me incentivaram, sempre eram muito solícitos, amavam que eu sempre estava diferente no vídeo, então eu tinha uma recepção muito grande dentro do meu trabalho quanto a isso. Mas algumas pessoas de fora sempre me questionavam dessa forma. Dentro do meu trabalho os próprios funcionários, os meus chefes sempre me apoiaram quanto a essa parte e as crianças, principalmente as crianças dos projetos, sempre ficavam muito curiosos com o meu cabelo e de forma muito positiva, tipo assim, se enxergam.”

Para Cler, ser uma mulher negra retinta e favelada nesse ambiente a aproximou das fontes e de pessoas que assim como ela, tem origens humildes e lidam diariamente com a pobreza.

“Teve até um momento Lembro que eu fui na Escola do Futuro do Morro do Papagaio e nessa unidade, uma menininha estava com cabelo igual meu e ela atravessou a quadra correndo para me mostrar, falar assim: “Olha, tia, eu tô com cabelo igual e a gente tirou uma foto que a gente estava com cabelo igual”.

Ainda assim, de acordo com Cler, a ausência de outras mulheres negras e de pessoas negras no geral tornava o ambiente hostil, principalmente em eventos onde a maioria das pessoas era branca e com um alto poder aquisitivo.

Cler e Josué PK, cinegrafista, durante reportagem em Betim

Fonte: Leo Alves Photos

“A percepção de ser uma mulher negra nesse ambiente é invisibilidade, né? Não que não tenha outras mulheres negras, mas eu, por exemplo, fui a segunda repórter negra do instituto depois da Carol, mas de negra, de mulher negra no time só tinha eu. Meu cinegrafista era negro, mas ele era um homem. E é muito difícil porque o Instituto Galo, ao mesmo tempo que ele permeia por dentro de espaços, que eram carentes, que eram de comunidade, de lugares que eu me percebia, que as pessoas me percebiam, que me olhavam com admiração, por exemplo, eu já participei de alguns eventos em que eu fui despercebida, que eu fui invisibilizada, que eu fui passada como se eu fosse um funcionário qualquer, e eu não tô falando que os outros são qualquer. Eu tô falando que não me viam como uma repórter. Ela tá fazendo tudo aqui, menos uma reportagem.”

Para Cler, as situações de racismo e machismo cotidianas eram as piores.

“Rolavam uns desconfortos, desconfortos que eu não vou minimizar, mas que eu vou chamar de diários aqui, que é aquele olhar do seu cabelo, é aquele olhar meio sexualizado, é às vezes na hora de te cumprimentar, você dá a mão para te cumprimentar, a pessoa te puxa para um abraço sem ter intimidade, a confusão se você é a repórter ou a fonte.

Então, esses constrangimentos eram mais tensos, assim, eu acho que para mulheres negras no campo do jornalismo esportivo, pelo menos da parte que eu participei, é duro.

O que mais me doeu, não foram os eventos, foram situações e pessoas pontuais, isso foi uma coisa que foi pesada para mim. Foi uma coisa que me fez repensar. Eu nunca tive o sonho de trabalhar com esporte, igual eu falei. Foi uma oportunidade e eu abracei, mas eu pensei: Se isso aqui fosse meu sonho, eu já teria desistido, porque eu achei o ambiente hostil demais.”

Cler pontua que trabalhar em um instituto, e não diretamente em contato com os agentes envolvidos na prática esportiva, pode ter suavizado diversas situações, inclusive por encontrar identificação nas pessoas que eram atendidas pelo instituto. Questionada sobre as dificuldades de trabalhar com esporte, ela faz questão de situar esse ponto:

“É uma pergunta difícil assim, eu via como um campo de atuação extremamente possível para mulheres negras, por exemplo. São pessoas que vêm da comunidade, eu lidava com gente da comunidade o tempo todo, então se você se encaixava nesse perfil, provavelmente a sua facilidade, a sua aceitação das fontes, as pessoas que você ia conversar, os alunos dos projetos, seria bem tranquilo.”

“O que era difícil de lidar é quando se tornava um evento grande, um evento com marcas, com empresas, onde a gente já tem uma predominância maior de pessoas brancas, principalmente de homens brancos e que não nos enxergam como tal.”

Apesar das dificuldades que enfrentou, Cler consegue ter um olhar positivo sobre o futuro da área, em especial, das mulheres negras na área. Sem romantizar dificuldades e situações como machismo e racismo, ela consegue perceber avanços.

“É bem difícil. Eu acho que hoje o jornalismo esportivo, sei lá, o de futebol e o de outros esportes vai ser mais aberto porque nós temos caminhado bem. Ainda pouco, mas temos caminhado bem.”

“Então, eu acho que ainda é um cenário que ele não é tão positivo, mas nós estamos fazendo com que ele seja (menos negativo), a passos pequenos e amedrontados, porque é ameaçador estar nesse ambiente também, mas estamos evoluindo.”

Apesar das palavras esperançosas, Cler, que deixou o Instituto Galo para trabalhar no jornal O Tempo, não deseja voltar a trabalhar com futebol. Apesar das situações citadas, ela deixa claro que as questões de raça e gênero não foram determinantes para que deixasse o trabalho e a área, até por entender que sendo uma mulher negra, os mesmos desafios continuariam existindo.

“Eu não vou falar que foi assim: nossa teve um negócio que me fez querer sair! Não teve isso até porque eu tinha uma equipe muito boa que era acolhedora tanto a minha equipe interna mesmo, meu cinegrafista e tudo mais que também era um homem negro, quanto o restante do pessoal do instituto, mas eu queria mais para mim, eu achava que ali era um espaço de crescimento que na minha visão naquele momento era pequeno para o que eu poderia fazer.”

“Então, eu não posso falar que a questão de raça foi algo que me fez sair, não. Porque eu consegui me colocar muito bem, entendeu? Eu tive os desafios que eu citei, tive, mas eu sempre consegui me colocar e me posicionar de forma efetiva, entendeu? Então, assim, eu acho que funcionava.”

*Mestranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante do grupo de pesquisa em Comunicação e Culturas Esportivas, o Coletivo Marta. Repórter da ESPN em Belo Horizonte.

**Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.

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