Renata Silveira e a misoginia na locução esportiva

Por Cissa Canto Silva Coimbra*

As mulheres têm conquistado cada vez mais espaço como narradoras esportivas no Brasil desde 1970, quando Zuleide Ranieri e Claudete Troiano foram as primeiras mulheres a narrar futebol no rádio, na Rádio Mulher em São Paulo. Atualmente, Renata Silveira, Natália Lara e Luciana Mariano são nomes que se destacam em um cenário tradicionalmente masculino. Apesar da presença crescente, elas ainda enfrentam resistência no meio.

Nesse sentido, Renata Silveira tem se destacado na internet e recebido uma diversidade de comentários negativos sobre suas aparições. Entre elogios e críticas, chamam a atenção os comentários carregados de misoginia que deslegitimam sua atuação profissional. Assim, o que parece estar em jogo não é, necessariamente, a narração de Renata, mas, sim a representação simbólica de um corpo feminino em um espaço masculinizado.

A voz por trás das transmissões

Renata é formada em Educação Física e possui pós-graduação em Jornalismo Esportivo. Realizou sua primeira locução em 2014, quando narrou a partida entre Uruguai e Costa Rica na Copa do Mundo na Rádio Globo, após vencer o concurso Garota da Voz. Em 2018, se tornou narradora pela Fox Sports Brasil, onde fez parte da transmissão da Copa do Mundo sediada na Rússia. Em 2020, o Grupo Globo anunciou a contratação da narradora para o canal SporTV. Na TV aberta, a profissional teve sua estreia ainda pela Globo, na Copa do Brasil de Futebol em 2022.

Renata Silveira se tornou a primeira mulher a narrar um jogo da Copa no Brasil, transmitido pela Globo em 2022. Aos 33 anos, a locutora deu voz ao primeiro gol narrado por uma mulher em Copa do Mundo. Além disso, de acordo com o portal de notícias G1, a carioca ainda foi pioneira em outras ocasiões.

Ela foi a primeira mulher a narrar:

  • Um jogo da seleção brasileira em Olimpíadas (Tóquio, 2020) e a primeira mulher a narrar pelo SporTV;
  • Uma transmissão na TV aberta na partida da Supercopa feminina;
  • Uma partida masculina na TV aberta, no jogo Ceilândia e Botafogo na Copa do Brasil 2022;
  • Um jogo masculino na série A entre São Paulo e América-MG;” (SARMENTO, 2022)

Renata Silveira na final da Supercopa feminina de 2022

Fonte: Reprodução/Instagram/Renata Silveira

Com a ascensão profissional, Renata tem se tornado alvo de comentários nas redes sociais. Vídeos de suas locuções, bem como vídeos onde usuários comentam sobre a performance da narradora são postados com um discurso misógino generalizado. A internet se torna palco dessas interações e

“os  webleitores  se  põem  prodigamente  a comentar e a emitir suas opiniões – em nome de uma concepção equivocada de direito à liberdade  de  expressão – muitas  vezes  carregadas  de  ódio  e  preconceito,  instilando  não apenas  práticas  violentas  como  também  fazendo  de  sua  postagem  um  exercício  de violência” (Nalli e Mansano, 2019, p. 4)

O preconceito revestido de opinião pode ser facilmente encontrado ao fazer uma busca com o nome da locutora em redes como o Tiktok ou o X (antigo Twitter).

Comentários sobre Renata encontrados em redes sociais

Fonte: Reprodução/Tiktok e X

Esses comentários não são apenas opiniões individuais: eles formam um discurso coletivo que reafirma a masculinidade como padrão de competência na narração esportiva. O incômodo narrado pelo público que assiste aos jogos não é apenas com a voz ou com a forma de narrar de Renata, mas com o deslocamento de um campo antes exclusivamente masculino para um agora ocupado por mulheres.

Apesar de sua qualificação técnica e sua performance profissional – afinal, se tornou locutora a partir de um concurso da Rádio Globo e, atualmente, faz parte do time de narradores da TV do mesmo grupo – a competência de Renata ainda é questionada pelos telespectadores: “É nessas horas que eu aceito que o lugar de mulher é na cozinha, que narração horrível”, “Pelo amor de Deus, que narração ridícula dessa Renata Silveira. Não dá emoção nenhuma ao gol.” O que se rejeita não é exclusivamente a narradora, mas, essencialmente, o direito das mulheres de participarem do futebol.

A voz feminina na narração esportiva desorganiza o campo simbólico do futebol – esporte que foi e ainda é vinculado à uma representação de masculinidade hegemônica. A resistência com a voz de Renata e de outras jornalistas pode ser explicada, também, por um tensionamento da lógica de quem pode narrar o jogo. Historicamente, com uma lógica de poder masculinista, esse papel esteve associado ao homem. Em entrevista ao G1, Renata Mendonça relata:

“Nunca imaginei que pudesse ser comentarista. O [narrador] Everaldo Marques conta que quando era pequeno já jogava futebol de botão narrando. Eu jogava futebol de botão com o meu irmão e era ele quem narrava. Jamais imaginei que eu pudesse fazer isso.” (G1, 2022)

De acordo com bell hooks (2013)[1], escutar é um ato político. Nesse sentido, escutar é reconhecer que, quem narra o jogo, tem legitimidade para o fazer. No caso de Renata, a negativa de parcela do público em aceitar sua narração, revela um incômodo com sua presença nesse espaço de poder. Narrar o jogo é mais do que descrever os lances. Quem narra controla o ritmo da transmissão e direciona as emoções. Em comentários nas redes sociais, internautas relatam que preferem assistir aos jogos no mudo quando a transmissão é conduzida pela jornalista. Esse tipo de reação à presença de Renata como locutora revela que a escuta ainda é uma barreira.

Internauta sobre jogo narrado por Renata Silveira

Fonte: Reprodução/ X

A situação de rejeição vivida por Renata ganhou ainda mais visibilidade em 2024, quando ela anunciou a exclusão de sua conta no X após uma onda de ataques. Na ocasião, um internauta fez uma postagem criticando a narração de uma partida entre Inter e Corinthians, atribuindo sua crítica à narradora. Renata, porém, não esteve à frente da narração desse jogo. Mesmo após o esclarecimento, os ataques continuaram. A jornalista, então, anunciou a desativação de seu perfil, motivada pela proporção das críticas.

Renata responde à crítica de internauta

Fonte: Reprodução

A jornalista é o centro dos comentários, uma vez que ocupa um papel de representatividade de toda uma classe na narração. Essas críticas, porém, vão além e ditam as condições para a presença das mulheres nesse espaço. Para terem seu espaço respeitado e reconhecido pelos telespectadores, Renata Silveira, Natália Lara, Luciana Mariano e outras mulheres que têm ganhado visibilidade na mídia esportiva ainda precisam reafirmar constantemente sua capacidade. “Vou estudar duas vezes mais porque não tenho tempo para errar. A gente não pode errar. Se o homem erra, ele se enganou. Se a mulher erra é porque a mulher não sabe, é porque ela não devia estar ali”. (Renata Silveira, em entrevista para o G1). No mesmo sentido, Renata Mendonça, jornalista esportiva especialista em futebol – que cobriu a Copa do Mundo ao lado de Silveira – relatou ao G1 que “O erro de um homem é só dele. O erro de uma mulher vai refletir em todas”.

Representatividade não é tudo, mas é o começo

Apesar das críticas recebidas, Renata reconhece a importância de seu trabalho na história do esporte no Brasil. Em entrevista exclusiva para a Vogue, a jornalista falou sobre seu papel pioneiro na profissão e como ele pode inspirar a outras mulheres:

“Estou muito feliz com essa nova etapa na minha vida e, ao mesmo tempo, sei da responsabilidade que o cargo exige. É uma conquista para todas as mulheres e mais uma prova de que nós podemos trabalhar com o que a gente quiser.” (Renata Silveira, em entrevista para Vogue)

A presença da narradora nas transmissões é política. Como argumenta Butler (2003), o corpo é um efeito das normas culturais que definem e legitimam os padrões de gênero, reforçando quais identidades são legítimas em determinado espaço. Assim, Renata e outras vozes femininas ao alcançarem o espaço da narração esportiva trazem à tona tensões normativas que estruturam o campo esportivo e midiático. Uma voz feminina que narra o evento mais importante do futebol representa uma quebra de paradigma e, ao contrário do que se afirmava no art. 54 do Decreto-Lei 3.199 de 1941[2], o futebol é, sim, compatível com a feminilidade.

Além de usar a voz para narrar os jogos, Renata e outras mulheres têm usado de sua visibilidade para abrir espaço, também, para os debates de gênero na mídia esportiva. “Mais do que um sonho meu, estamos representando a possibilidade de as meninas sonharem.” (Renata Mendonça em entrevista para o G1, 2022). As jornalistas estiveram juntas na transmissão da Copa do Mundo de 2022 pelo SporTV e pela Globo.

As narradoras Renata Silveira e Natália Lara e as comentaristas Renata Mendonça e Ana Thaís Matos

Fonte: Divulgação/TV Globo

O caso de Renata Silveira mostra que avanços em visibilidade não significam, necessariamente, mudanças estruturais. Sua presença no centro da transmissão esportiva rompe barreiras e inspira outras mulheres, mas também revela o quanto ainda falta para que a igualdade de oportunidades e respeito se consolidem como norma. A ausência de campanhas educativas, de moderação mais ativa nas redes sociais, ou de respostas editoriais diretas aos ataques revela um limite da representatividade promovida. Ao lado dos avanços, as disputas por legitimidade ainda persistem e chamam a atenção para a importância do debate.

REFERÊNCIAS

BARDUSCO, Gabriela. A representatividade de Renata Silveira: “Sei da responsabilidade que o cargo exige, é uma conquista para todas as mulheres”. Vogue, Rio de Janeiro, 10 mar. 2021. Seção: Celebridade. Disponível em: https://vogue.globo.com/celebridade/noticia/2021/03/representatividade-de-renata-silveira-sei-da-responsabilidade-que-o-cargo-exige-e-uma-conquista-para-todas-mulheres.html. Acesso em: 1 jun. 2025.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Dispõe sobre a organização dos desportos em todo o território nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 21 abr. 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3199.htm. Acesso em: 1 jun. 2025.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GONÇALVES, Gabriela. Renata Silveira, 1ª narradora da Copa na Globo, diz que se prepara ‘2x mais’: ‘A gente não pode errar’. G1, Rio de Janeiro, 25 nov. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/tv-e-series/noticia/2022/11/25/renata-silveira-1a-narradora-da-copa-na-globo-diz-que-se-prepara-2x-mais-a-gente-nao-pode-errar.ghtml. Acesso em: 1 jun. 2025.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Sandra Regina G. de Souza. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

MORETTI, Juliene. O erro de uma mulher reflete em todas, diz Renata Mendonça, comentarista da Copa. G1, Rio de Janeiro, 21 nov. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/copa-do-catar/noticia/2022/11/21/o-erro-de-uma-mulher-reflete-em-todas-diz-renata-mendonca-comentarista-da-copa.ghtml. Acesso em: 1 jun. 2025.

NALLI, M.; MANSANO, S. Da violência psicopolítica na contemporaneidade: uma análise das dimensões afetivas. Psicologia em Estudo, v. 24, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.43021. Acesso em: 1 jun. 2025.


[1] O pseudônimo é escrito em letras minúsculas por determinação da própria autora.

[2] “Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.” (BRASIL, 1941)

* Cissa é graduanda em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: cantocissa@gmail.com

**Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.