Por Victória Alves*
Criado em 2024 como Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo na Universidade Federal de Sergipe, o Passe Delas surgiu da inquietação de Fernanda Spínola diante da ausência de cobertura midiática local sobre o futebol feminino.
Fernanda Spínola, 23 anos, jornalista recém-formada pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), é a mente por trás do Passe Delas — um portal que nasceu com o propósito de iluminar o que há muito tempo permanece nas sombras: o futebol feminino no menor estado do país. Em Sergipe, onde a cobertura esportiva ainda gira, majoritariamente, em torno do masculino, a iniciativa surgiu como resposta a um silêncio incômodo. Em poucos meses, o que começou como um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) transformou-se em uma mídia independente, conduzida integralmente por uma jovem profissional, obstinada a preencher lacunas e oportunizar mulheres que sonham em viver do esporte.
Desde a infância, o esporte já fazia parte do cotidiano de Fernanda. A paixão começou em casa, impulsionada pela figura do pai, um torcedor fervoroso que mesmo sem praticar esportes, carregava o futebol como tradição. “Eu sempre gostei de esporte e meu pai sempre foi uma pessoa muito ligada ao esporte”, relembra. A memória afetiva mais marcante talvez seja a de ouvir, repetidamente, o hino do Bahia, cantado com orgulho pelo pai — mesmo que ela mesma nunca tenha torcido pelo clube da terra natal.
Mas foi na universidade que sua relação com o esporte se transformou. O curso de Jornalismo na UFS abriu novas possibilidades. “Quando eu cheguei na faculdade, eu conheci o jornalismo esportivo. Teve esse leque de opções e o jornalismo esportivo foi onde eu realmente me encontrei”, conta. E foi também ali, entre as disciplinas práticas e as ausências sentidas na cobertura esportiva local, que a ideia do Passe Delas começou a tomar forma.
Fernanda Spínola fazendo fotos para incluir nas publicações do Passe Delas

Antes mesmo de se tornar TCC, o projeto já dava sinais de que havia algo a ser feito. Fernanda experimentou o tema em uma disciplina optativa, produzindo uma revista sobre futebol feminino. Foi o estopim. O que parecia ser apenas um trabalho acadêmico isolado começou a ganhar corpo e se tornar cada vez mais promissor.
“Foi meu orientador quem disse: ‘por que você não cria algo, já que quer tanto uma mudança?’ E aí surgiu o Passe Delas de verdade”, conta. Mas não foi simples. Ela admite que, no início, não gostava de mídias sociais. “Hoje sou apaixonada por elas, mesmo com as dificuldades de ser uma mulher à frente de um projeto que fala sobre mulheres”, completa.
Em outubro de 2024, o portal foi oficialmente lançado. Hospedado no WordPress e com apoio técnico para o desenvolvimento do site, o Passe Delas foi inteiramente pensado por ela — do nome à identidade visual, da editoria à linguagem.
O Portal democratiza informações de jogos, inscrições e seletivas na região

E mais do que isso: todo o conteúdo é produzido por Fernanda, sozinha. “Tudo sozinha: matéria, campo, rede social, template, arte… só não fiz o site, mas desenhei como queria”, explica.
A rotina é intensa. Fernanda cobre partidas in loco, entrevista atletas e técnicas, edita fotos, escreve reportagens, alimenta as redes sociais e ainda produz artigos de opinião que buscam questionar as ausências históricas na modalidade sergipana feminina, que de difícil acesso, pouco se há no jornalismo esportivo. A frequência das publicações é semanal, afirma a jornalista, que diz também trabalhar no Jornal da Cidade.
Na imagem, a jornalista junto à atleta da Associação Desportiva Barra

Mesmo com tantas funções acumuladas, ela não desanima. Pelo contrário: encontra sentido em cada jogo acompanhado, em cada atleta que agradece por ser vista. “Dar visibilidade para as meninas que jogam é incrível. Toda vez que vou aos jogos, elas já me reconhecem. Pedem fotos, perguntam se vão aparecer. Isso não tem preço”, afirma emocionada.
Essa conexão direta com as jogadoras é um dos pilares mais fortes do projeto. O Passe Delas não apenas cobre campeonatos — ele cria pontes, estabelece vínculos e contribui para que as atletas se sintam parte de uma narrativa que antes as excluía na mídia, e hoje, através do Passe Delas, as coloca em posição de destaque.
Contudo, a trajetória até aqui está longe de ser romantizada. Fernanda enfrentou (e enfrenta) barreiras que não deveriam fazer parte da rotina de nenhuma jornalista. “Quando a gente vai a fundo e vê que é um mundo muito masculino, eu acho que toda mulher que vem falar sobre esporte vai falar sobre a questão do machismo. Machismo? Cara, eu enfrentei muito assédio. E foi horrível, porque eu tenho ansiedade”, desabafa.
Além disso, como toda mídia nova que surge, o Passe Delas também sofreu com a desconfiança. A credibilidade, no início, foi posta em xeque — não por erros, mas por ser um projeto novo, feito por uma mulher jovem, tratando de um tema ainda pouco explorado. “Como era uma mídia nova, não tinha credibilidade nenhuma”, afirma. E completa: “Sempre busquei falar o que outras pessoas não estavam falando”.
Esse compromisso com a originalidade e com um jornalismo crítico transformou o portal em muito mais do que uma vitrine esportiva: fez dele um espaço de resistência, de valorização das mulheres que constroem a modalidade e de preservação da memória do futebol feminino sergipano.
Ao ter seu projeto selecionado para o Intercom Nordeste, Fernanda Spínola foi tomada por um misto de orgulho e apreensão. “Fiquei muito feliz quando ele foi aprovado. Ao mesmo tempo, estou ansiosa e com medo de decepcionar. Mas já é uma conquista estar entre os melhores do Nordeste”, confessa a jornalista recém-formada.
A iniciativa será apresentada na etapa regional do Intercom Nordeste, uma das mais importantes vitrines acadêmicas da Comunicação, reconhecida por destacar projetos inovadores de estudantes e recém-formados. O Passe Delas concorre na categoria Empreendedorismo em Comunicação, reforçando como a proposta ultrapassou os muros da universidade.
Mais do que uma conquista acadêmica, o reconhecimento já alcançou o cenário profissional: o projeto foi destaque em programas de TV e chegou até a estampar a capa de um dos principais jornais locais.
Fernanda conseguiu divulgar seu trabalho sobre FutFem no Jornal da Cidade.

Agora, com a apresentação marcada para a última semana de junho de 2025, no Ceará, o Passe Delas se firma como uma iniciativa de impacto crescente — dentro e fora da universidade.
Ao revisitar sua caminhada, Fernanda reconhece pontos que poderiam ter sido diferentes. “Teria feito mais cursos de marketing e mídias sociais. Acho que isso teria feito diferença no projeto e na minha carreira”, admite. Também reconhece que faltou incentivo institucional durante a formação. “A universidade é um pouco atrasada ainda, na minha opinião. É tanto que estão mudando a grade [curricular]. (…) Teria praticado mais o audiovisual, feito mais reportagens, mais notícias”.
Ainda assim, ela celebra o estágio em um jornal impresso — experiência que considera essencial para o amadurecimento profissional. E mesmo diante das dificuldades, não perdeu o desejo de ser reconhecida pelo que faz. “Meu maior sonho sempre foi ser reconhecida pelo que eu faço. Acho que o reconhecimento é algo que bate no coração”.
Baiana de nascimento, mas sergipana de coração, Fernanda aprendeu a ver o estado não apenas como cenário, mas como matéria-prima de sua narrativa. “Se o futebol masculino nordestino já enfrenta dificuldades, imagine o feminino”, comenta, com a voz de quem vive a realidade nos bastidores.
O Passe Delas também foi convidado a participar de programa de TV local.

Hoje, o Passe Delas é mais do que um projeto de TCC — é um projeto que ecoa não apenas uma voz, mas várias, em forma de resistência dessas tantas atletas que desejam ser mais vistas e notadas, não apenas pela mídia, mas pelas federações, clubes e sobretudo, pela sociedade. É por meio deste projeto, pensado inicialmente por uma estudante – e atualmente recém-formada – que além de tudo, podemos afirmar: é certo dizer que há muito mais a ser contado, e que cada jogadora esquecida em um campo de terra batida também merece manchete, foto, e sobretudo, o reconhecimento de poder sonhar.
E assim, Fernanda segue. Um dia de cada vez, como ela mesma diz. Com a câmera na mão, a pauta na cabeça e o sonho de transformar realidades e fazer com que, não apenas ela, mas que todas essas atletas capturadas pelas suas lentes possam ser reconhecidas pelo seu trabalho, uma de cada vez, dia após dia.
REFERÊNCIAS
ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina?. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 3, p. 445–465, 2011.
SALVINI, Leila; SOUZA, Juliano de; MARCHI JUNIOR, Wanderley. A violência simbólica e a dominação masculina no campo esportivo: algumas notas e digressões teóricas. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 26, n. 3, p. 401–410, jul./set. 2012.
* Victória é mestranda em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Contato: victoria.alves.116@ufrn.edu.br
**Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.

