Por Siony Rocha de Sousa*
O futebol faz parte do cotidiano do brasileiro, seja indo ao estádio ou através dos meios de comunicação, é comum para o apaixonado por futebol acompanhar os jogos do seu time, as notícias, e debater sobre o desempenho da equipe e o desenrolar das competições, quer na mesa do bar ou nas redes sociais, o futebol nos acompanha. De tal maneira imbricado em nossa cultura, ainda sim, distante de alguns de nós. O futebol e o torcer foram historicamente associados ao masculino algo que se reflete nessa prática ainda nos dias atuais.
A ideia de que as mulheres não se interessam por futebol ou que essa prática seria contrária a sua “natureza feminina” contribui para afastar as mulheres de tudo que está relacionado a esse esporte, como uma tentativa de não masculinizar as mulheres (GOELLNER, 2008). A vista disso, podemos citar o fato de que a prática do futebol institucionalizado por mulheres no Brasil é recente, apenas a partir da década de 80, a proibição estabelecida pelo Decreto Nº 7 publicado em 1965 pelo Conselho Nacional de Desporto foi revogado. Apesar dessas proibições não significarem a inexistência do futebol feminino (MARTINS, SILVA, VASQUEZ, 2021), os reflexos desse período permanecem até a atualidade, sendo bastante expressivas as diferenças entre o futebol de homens e de mulheres praticado no país. Esse contexto trouxe impactos que não se limitam ao campo de jogo, mas se refletem também nas arquibancadas. Embora não houvesse uma proibição em relação a presença feminina nos estádios nesse mesmo período, certamente a tímida presença das mulheres nas torcidas organizadas é em alguma medida resultado desse cenário.
Enquanto em qualquer aspecto relacionado ao futebol, é possível encontrar um homem heterosexual assumindo essas funções, independente de suas outras características, sobretudo nas posições de maior protagonismo e autoridade (LOPES, 2024), a presença feminina não é observada na mesma proporcionalidade, como por exemplo, nas lideranças das torcidas organizadas de futebol. Ainda que algumas torcidas tenham diretórios femininos[1] em sua composição, a presença das mulheres em cargos de diretoria ou presidência são praticamente inexistentes.
Salvini e Marchi Júnior (2021) relatam que em nossa cultura o futebol apresenta um espaço para reprodução de sentidos de masculinidade e que a entrada das mulheres nesse território conflita os agentes dominantes, por isso a falta de estímulo à sua prática, ou demais atividades dentro do futebol, como as funções de gerenciamento e organização, bem como, a ação de torcer. É preciso destacar que há agrupamentos que lutam por pautas feministas, embora quando se trata das torcidas mais tradicionais, a presença das mulheres seja tensionada.
Ainda assim, algumas mulheres romperam com as desigualdades de gênero e assumiram posições de liderança em torcidas, como Dulce Rosalina, Chefe da Torcida Organizada do Club de Regatas Vasco da Gama (TOV) durante os anos de 1956 a 1977, sendo a primeira mulher a liderar uma torcida organizada no Brasil. As barreiras vencidas por essa torcedora são uma representação importante no confronto à opressão masculina, principalmente numa época onde o envolvimento das mulheres no futebol era ainda mais questionado.
Podemos citar também Fatima Batista, a primeira mulher presidente da torcida organizada vinculada ao Fortaleza Esporte Clube, a Torcida Uniformizada do Fortaleza (TUF), que em 1994 assumiu a liderança na arquibancada lutando pela presença das mulheres no estádio, através da criação do núcleo feminino, dentre outras ações. Apesar do pioneirismo dessas mulheres e na luta pela a igualdade de gênero nas torcidas, esse é um espaço de embates e resistências.
Uma liderança contemporânea
No contexto contemporâneo podemos mencionar Carla Ribeiro que foi presidenta da Torcida Urubuzada do Clube de Regatas do Flamengo entre 2022 e 2024. A torcida Urubuzada foi fundada em 01 de agosto de 2006, com a finalidade de incentivar e estar com o Flamengo em todos os cantos do país e do mundo, não apenas no futebol, mas também em outras modalidades que o clube participa, como no basquetebol, voleibol, ginástica e outros.

Nascida na cidade do Rio de Janeiro, Carla Ribeiro se identifica com o Flamengo desde jovem e ao atingir a maioridade começa a frequentar os estádios para assistir aos jogos do clube. Em entrevista ao Podcast Mesa Fla, ela conta que inicialmente ia aos jogos com a Torcida Jovem do Flamengo, mas que se identificava com o perfil da Urubuzada e seu modo de torcer, não apenas nos jogos de futebol, o que fez com que ela se tornasse integrante da torcida. Sua jornada se inicia como monitora do núcleo feminino, chegando a ocupar outros cargos até tornar-se presidenta eleita.
Ao refletir sobre seu período na presidência da torcida, Carla relata em suas redes sociais[1] a importância de estar presente num contexto majoritariamente masculino onde ela lidou com diversos questionamentos em relação a sua legitimidade no cargo. Para as mulheres, estar presente nesse contexto envolve, antes de tudo, lidar com desafios para demonstrar que assim como os homens elas podem também assumir funções que comumente são associadas ao masculino. Ser parte de uma torcida organizada, sobretudo em uma função de liderança, desafia as performances de gênero estabilizadas através das normas sociais, já que historicamente os corpos femininos foram produzidos como submissos e disciplinados, ou seja, para ocupar a posição de liderado, e não de líder, é como se a permanência das mulheres se constituísse uma constante ameaça a manutenção de uma cultura masculina (MORAES, 2017).
Ao narrar o que mudou para as mulheres em sua gestão ela cita o fato das mulheres assumirem o protagonismo em algumas caravanas se fazendo presente em maior quantidade e a participação delas nas caravanas de guerra[2], algo incomum em outras torcidas organizadas, visto que há o risco de embate entre torcidas e ocorrências de violência física, algo “reservado” para os homens nesse universo, já que a competição, a virilidade e violência são característicos de uma masculinidade hegemônica (BANDEIRA e SEFFNER, 2013). Essas mudanças têm também um caráter prático e representativo com respeito à atuação feminina nos coletivos, pois a possibilidade de confrontos corporais demarca a prontidão das mulheres para defender a honra da torcida e ao mesmo tempo provar sua paixão pelo clube. Bordo (1997) nos faz refletir sobre o lugar que o corpo ocupa na cultura, não apenas como um elemento metafórico, mas como um agente e um lugar prático do controle social, e nesse caso, especificamente, para rompimento da norma. Embora seja necessário reconhecer que esse contexto específico não compreende toda a diversidade de torcidas existentes no país.
Com relação aos casos de assédio dentro dos estádios e nas torcidas, Carla comenta sobre como isso durante muito tempo foi normalizado nesse ambiente e que as pautas feministas contribuíram para que as mulheres tenham voz e possam circular mais livremente nos estádios, sem que se faça necessário a proteção de um homem. Ir ao estádio sozinha ou com outras mulheres tem se tornado mais comum em função do protagonismo feminino nas arquibancadas, ainda que não seja um ambiente acolhedor para elas.
As bandeiras, as faixas, a música é algo característico das torcidas organizadas diferenciando-as da torcida comum, em geral, os homens se tornam responsáveis pela manipulação desses acessórios. Carla conta que em sua gestão as mulheres poderiam assumir essas funções, mas que em outras torcidas as mulheres não têm permissão para tocar instrumentos ou tremular bandeiras e acabam assumindo tarefas ligadas ao feminino, como a limpeza das sedes, por exemplo.
Estar presente não significa se apropriar do espaço ou de uma prática, mesmo sendo parte de uma torcida organizada, muitas mulheres ainda que inconscientemente acabam reproduzindo comportamentos que reforçam as desigualdades de gênero. Figuras como Carla Ribeiro são importantes para que o protagonismo feminino no futebol e particularmente nas arquibancadas crie novos modos de torcer e novas sociabilidades no cotidiano das torcidas.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, G. A.; SEFFNER, F. Futebol, gênero, masculinidade e homofobia: um jogo dentro do jogo. Espaço Plural, v. 14, n. 29, p. 246-270, 2013.
BORDO, S. R. O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault. In: Jaggar AM, Bordo SR (org.). Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, p. 19-41, 1997.
Conheça a nossa HISTÓRIA! Disponível em: https://urubuzada.com.br/historia/. Acesso em Junho/2025
GOELLNER, S. V. “As mulheres fortes são aquelas que fazem uma raça forte”: esporte, eugenia e nacionalismo no Brasil no início do século XX. Recorde: revista de história do esporte. Rio de Janeiro. Vol. 1, n. 1 (jun. 2008), p. 1-28, 2008.
LOPES, F. T. P. Torcedores de futebol, dominação e resistência: apontamentos teóricos. Revista Ars Histórica, v. 1, 2024, p. 12-30.
MARTINS, M. Z.; SILVA, K. R. S. VASQUEZ, V. As mulheres e o país do futebol: intersecções de gênero, classe e raça no brasil. Movimento, [S. l.], v. 27, p. e27006, 2021. DOI: 10.22456/1982-8918.109328.
MORAES, C.F. As torcedoras querem torcer: tensões e negociações da presença das mulheres nas arquibancadas de futebol. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017. Disponível em: <http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503881784_ARQUIVO_Artigo_FazendoGenero_VF_Carolina.pdf>. Acesso em: Maio/ 2025. SALVINI, L.; MARCHI JÚNIOR, W. Formação de um habitus futebolístico em mulheres no Brasil: um relato a partir das vivências de infância e vida adulta. Rev Bras Educ Fís Esporte, São Paulo, 2021. Abr-Jun;35(2):263-271.
[1] Os diretórios (comando, bonde, núcleo, pavilhão, etc.) femininos são uma subdivisão presente em algumas torcidas mistas com intuito de demarcar a presença das mulheres, bem como, pontuar suas demandas e anseios frente aos líderes da torcida, realizam ainda ações isoladas dentro do agrupamento como ações sociais, eventos, entre outros.
[2] Vídeos postados no Instagram: @licahribeiro.
[3] As caravanas de guerra estão relacionadas a jogos onde há rivalidades mais latentes entre os clubes e as torcidas, e consequentemente a possibilidade de episódios violentos é maior, como por exemplo, nos clássicos: Flamengo e Atlético, Palmeiras e Cruzeiro, etc.
*Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Física na Universidade Estadual de Campinas. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Sobre Futebol. Professora da Educação Básica (SEDUC-CE). Contato: sionyrocha.edf@gmail.com
**Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.

