As disputas sociais nos primórdios do futebol feminino no Brasil a partir do livro de Aira Bonfim

Por Alícia Rufino Soares (@aliciarsoares)*


FICHA TÉCNICA

Título: Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)
Autora: Aira Fernandes Bonfim
Editora: Independente
Ano de lançamento: 2023
Edição: 1ª
Local: São Paulo, Brasil
ISBN: 978-65-00-72480-6


Muito se discute sobre o surgimento do futebol feminino no Brasil e os motivos para se resultar em um Decreto-Lei que proibiu práticas esportivas. A historiadora Aira Bonfim apresenta em sua obra, fruto de sua dissertação de Mestrado, como o futebol de mulheres surgiu em espetáculos de circo, festas e festivais esportivos, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre os anos de 1915 e 1941.

Dessa forma, a autora aborda esse desenvolvimento inicial em todos os seus contextos, destacando como as normas sociais e as expectativas de gênero influenciaram diretamente na prática esportiva e como essas atletas utilizaram o esporte como um espaço de resistência. Como complemento, a história é apresentada a partir de imagens e publicações de jornais da época, que corroboram o padrão de feminilidade dessas mulheres e as críticas relacionadas à modalidade.

ENTRE FESTAS, CIRCOS E SUBÚRBIOS

A historiadora contou com grandes desafios em sua pesquisa, devido à ausência de documentações que comprovassem as primeiras práticas do futebol de mulheres no Brasil. Afinal, as atletas sempre foram invisibilizadas pela sociedade, assim como pela mídia. Após um árduo trabalho, foram encontradas evidências a partir da década de 1920, e um dos principais marcos é “o jogo de futebol entre senhoritas” realizado na cidade de São Paulo, entre moradoras dos bairros da Cantareira e do Tremembé, em 1921.

Anúncio da partida entre as senhoritas Tremembeenses e Cantareirenses, em 1921.

Fonte: A Gazeta, São Paulo, p. 2, 26 jun. 1921.

Por outro lado, o Rio de Janeiro apresentou uma gama de práticas esportivas e de lazer no século XX, principalmente por ser um dos centros mais importantes do país, em processo de urbanização e industrialização. O futebol começou de forma elitista, a partir de festas esportivas nos clubes, mas depois também se mostrou presente nos subúrbios da cidade, em bairros como Cascadura, Piedade, Engenho Novo, Realengo e Valqueire. A primeira festa esportiva teria acontecido no dia 14 de junho de 1919 no C.R. Flamengo, já os festivais esportivos foram predominantes entre 1939 e 1941, com equipes como o Casino do Realengo, o S.C. Brasileiro e a Equipe Azul e Branca. 

Além disso, entre os anos 1920 e 1930, também estiveram presentes na mídia divulgações das atrações circenses de “football feminino”. Esses circos — como o Irmãos Queirolo e o Alcebíades, do Palhaço Piolin — realizaram turnês principalmente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Esses espetáculos buscavam chamar a atenção do público e da imprensa e aumentar, consequentemente, a arrecadação com bilheteria. No entanto, esses campeonatos, que duravam cerca de três dias, não passavam de uma atração “jocosa”, com pouco interesse no desempenho esportivo. 

Divulgação de “football feminino” no Circo Irmãos Queirolo

Fonte: Revista Cenarium (2023).

É importante destacar que, nas primeiras décadas do século XX, as mulheres estavam presentes somente nas arquibancadas, e depois de intensas transformações, elas passaram a ocupar mais espaços. Por exemplo, nas festas esportivas, a mulher burguesa, que antes se fazia presente em ambientes controlados, passou a ter mais experiências sociais. Porém, como consequência, também houve um aumento de tensões sociais nesses locais, fruto de conflitos simbólicos de gênero, já que o futebol era considerado majoritariamente masculino, tal como o hóquei (Goellner, 2005).

DISPUTAS DE GÊNERO E PROCESSOS SIMBÓLICOS

A autora salienta que a iniciação feminina no esporte foi acompanhada de uma série de restrições visando, na maioria dos casos, controlar e preservar um certo padrão de corpo estabelecido à época — além de cumprir com obrigações sociais como o casamento e a maternidade. Dessa maneira, algumas modalidades eram mais bem vistas do que outras para a prática, como o remo, o hipismo, o tiro ao alvo, o críquete, o atletismo e a esgrima.

Ou seja, sempre houve uma preocupação de que as meninas fossem vistas como femininas e, assim, as vestimentas não poderiam “ferir essa feminilidade”, logo, usavam saias, vestidos e sapatilhas e, posteriormente em algumas modalidades, foram confeccionados uniformes exclusivos para elas. Dessa forma, a partir do momento em que as atletas foram contra esses padrões, utilizando bermudas ou até mesmo shorts curtos, foram consideradas atitudes de resistência a essas normas.

“O futebol de mulheres passou a ser descrito como uma ameaça à masculinidade vigente uma vez que supostamente deslocaria os papéis sociais da época. As obrigações ditas femininas seriam negligenciadas pelas jogadoras, bem como a concorrência aumentaria com o protagonismo delas dentro de campo” (Bonfim, 2023, p. 253).

Meninas participantes das atividades de uma “festa sportiva” realizada no América Football Club em 1917

Fonte: [revista] Careta, Rio de Janeiro, p. 24, 27 out. 1917.

A pesquisadora Silvana Goellner (2013) destaca que o esporte é uma prática social sexuada e generificada, com a construção de identidades masculinas e femininas. Em contrapartida, Pierre Bourdieu (1998) evidencia que a estrutura da sociedade expõe a dominação masculina por meio da divisão de atividades atribuídas ao homem e à mulher. Qualquer ação que fuja a essas construções e atribuições (e consequentes dicotomias) é responsável pela desestabilização dessas representações de gênero socialmente construídas.

Ainda, Michel Foucault (2018) afirmava que os sujeitos estão imersos em um campo discursivo, com esses discursos constituídos de signos que produzem novos objetos e relações de poder, estas que atravessam, caracterizam e constituem as instâncias sociais. Alguns desses sujeitos estão melhor posicionados do que outros, permitindo maior visibilidade — é o caso daqueles que se manifestavam contra a presença da mulher no esporte, principalmente na imprensa.

Como exemplo, nos subúrbios do Rio de Janeiro, as mulheres estavam inseridas em uma sociedade complexa e multifacetada, repleta de desigualdades de gênero resultantes de processos históricos, sociais e culturais, que são, por outro lado, passíveis de serem superadas e reescritas. O movimento feminista assim como a inserção da mulher no mercado de trabalho são exemplos de acontecimentos responsáveis por transformações sociais e deslocamentos no papel da mulher na sociedade. 

Equipes femininas do Brasil Suburbano Football Clube durante o festival de inauguração da iluminação do campo do River F.C

Fonte: A Noite Ilustrada, Rio de Janeiro, p. 2, 02 set.1931.

Levando em conta a Teoria Social de Erving Goffman (1985), os estigmas são processos sociais dados a partir da relação entre indivíduos “normais” e “estigmatizados”, por meio da atribuição de estereótipos (criados e manipulados). No caso das mulheres no esporte, esses estigmas estão diretamente relacionados à questão da feminilidade e outras características como graciosidade, beleza, delicadeza. Quando elas não as apresentam, são descredibilizadas de seu papel feminino e sofrem distintos atos discriminatórios machistas e sexistas (Salvini, Souza, Marchi, 2015; Toffoletti, 2016). 

De acordo com Erminia Silva e Luís Alberto e Abreu (2009, apud Bonfim, 2023), o público das práticas circenses buscava por sensualidade, magia e fascínio, mostrando mais uma vez o destaque aos atributos de feminilidade das mulheres — no caso, as artistas. Os próprios jornais da época faziam comentários que focavam nos atributos físicos das participantes, algo que será discutido com mais detalhes a seguir. 

IMPACTO DA MÍDIA NA REPRESENTAÇÃO DOS JOGOS

Parte dessa seção também se encaixa na editoria de Cornetagem do Observatório, já que será apresentada uma crítica em relação à cobertura jornalística dos três tipos de acontecimento (festas esportivas, festivais esportivos e práticas circenses). Em alguns momentos, os periódicos divulgaram esses eventos de forma positiva, destacando o ineditismo das primeiras práticas (mesmo que com a apresentação de estereótipos), entretanto, outros veículos, principalmente de São Paulo, se manifestaram contra a modalidade.

Em 1921, A Gazeta teria noticiado a realização de uma partida entre inglesas e francesas, com o uso de termos como “as inglesas jogaram como verdadeiros homens” e “o jogo desenvolvido pelas representantes do sexo fraco, foi forte, muito forte”. No ano seguinte, a Revista Souza Cruz fez o questionamento “(…) é um esporte aconselhado às moças?”. Essas duas notícias comprovam o lugar de disputas intensas sobre o que pode fazer um “corpo masculino” ou um “corpo feminino” (Oliveira, 2004) e demonstram certo descontentamento da presença feminina no futebol.

Em 17 de maio de 1940, aconteceu o jogo entre S.C. Brasileiro e Casino do Realengo F.C. no Estádio do Pacaembu, em São Paulo e, ao mesmo tempo que a mídia focava nos estereótipos utilizando termos como “charme” e “graça”, os jornais também realizavam críticas, como nestes trechos: “um disparate esportivo que não deve prosseguir”, “um antro de perdição”, “deve ser proibido”, “em atividade esportiva artificial e totalmente incompatível com a natureza de qualquer mulher”.

Manchete baseada na declaração do fisiologista Inezil Penna Marinho, assistente técnico do Ministério da Educação

Fonte: O Imparcial, Rio de Janeiro, p. 14, 15 jan. 1941.

É interessante destacar que, de forma geral, as mulheres como espectadoras, eram bem quistas e valorizadas pelos seus atributos físicos. Os jornais costumavam utilizar a expressão “bello sexo” para tratar dessas mulheres, que seguiam certo comportamento normativo. Conforme afirmado pela autora, esses termos são utilizados porque as notícias, em sua grande maioria, eram escritas “por homens e para homens”. 

Para Camargo (1999), os meios de comunicação contribuem para a construção do imaginário coletivo dos indivíduos. Logo, a forma como os jornais representavam as atletas impactava diretamente na formação da opinião do seu público. Por isso, o filósofo estadunidense Douglas Kellner (2001) analisou como a mídia influencia a forma como os indivíduos percebem e entendem os outros e suas relações sociais, além de serem utilizados para promover a dominação e a distorção da realidade. Certos grupos da sociedade desaprovavam esse crescimento das mulheres no esporte e utilizaram esses veículos para alcançar mais pessoas, como foi o caso da carta de José Fuzeira.

Manchete com a foto da equipe feminina do Casino do Realengo F.C.

Fonte: O Imparcial, Rio de Janeiro, p. 8, 10 mai. 1940.


O Estado brasileiro também foi responsável por definir quais comportamentos eram adequados para homens e mulheres, incluindo práticas esportivas. O ideal de mulher defendido pelo governo Vargas era o de mãe e esposa, principalmente em um período em que se desejava um aumento demográfico, e aquelas que desafiaram esse papel foram fortemente estigmatizadas. Dessa forma, em 1941, foi aprovado o decreto-lei nº 3.199, que proibiu por mais de quatro décadas a prática esportiva para mulheres no país. Os argumentos para tal foram “a preservação de uma moral e dos ditos bons costumes”, “a manutenção de uma estética de ‘feminilidade’”, “a proteção das funções orgânicas da mulher” e “o cuidado com os valores e caráter das mulheres” (Bonfim, 2023). 

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país” (Brasil, 1941).

APRENDIZADOS PARA A ATUALIDADE

 A obra de Aira Bonfim é uma das principais referências sobre as origens do futebol feminino no Brasil e demonstra como as disputas sociais estiveram presentes e impactaram a prática da modalidade. O futebol, antes voltado para homens das classes mais altas da sociedade, abre espaço para quem queira praticá-lo, depois de lutas e transformações sociais.

O futebol de mulheres caminhou um longo caminho desde suas primeiras menções nos meios de comunicação, às vezes de forma positiva, às vezes de forma contrária e com a apresentação de estereótipos baseados em seus atributos físicos. Entretanto, consideram-se todos os pequenos passos até chegar nos dias de hoje, em que a modalidade conta com maior visibilidade na mídia, o que também resulta em maior interesse dos torcedores a acompanhá-la.

Apesar de ainda existir muito machismo no meio e certo público se recusar a consumir o futebol feminino (seja nos estádios ou pela TV), é perceptível o espaço que tem sido conquistado, recordes de audiência têm sido batidos, competições têm sido desenvolvidas e, claro, a realização de uma Copa do Mundo Feminina no país. Ainda há muito o que se fazer para o desenvolvimento na modalidade no Brasil, mas toda pequena luta e qualquer visibilidade é primordial para evoluções acontecerem.

SOBRE A AUTORA

Aira Bonfim é historiadora do esporte; graduada em Artes Visuais pela Unicamp e Mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV-RJ. A autora atuou como técnica pesquisadora do Museu do Futebol, em São Paulo, entre 2011 e 2018, tendo sido co-curadora das exposições “Rainhas de Copas” (2023), “Contra-Ataque” As mulheres do Futebol” (2019) no mesmo e “Pioneiras” (2021) na Granja Comary (CBF). Também foi coordenadora e co-autora da publicação infanto-juvenil “Histórias da Copa América Feminina” (2022) para a Conmebol e do projeto de extensão de mapeamento do futebol feminino varzeano na Grande São Paulo (2022) na PUC-SP.

Aira Bonfim em sua participação no I Seminário Internacional do Coletivo Marta (2024)

Fonte: Coletivo Marta (2024).

REFERÊNCIAS

BONFIM, Aira Fernandes. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). São Paulo: Aira Bonfim, 2023.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Estabelece as bases de organização dos desportos em todo o país. Brasília, DF: Presidência da República, 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del3199.htm Acesso em: 02 out. 2024.

CAMARGO, Vera Regina Toledo. O movimento olímpico e os meios de comunicação de massa: a interdependência e a perpetuação do mito esportivo. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, São Paulo, set. 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

FUTEBOL já foi atração de circo no Brasil. Revista Cenarium, 2023. Disponível em: https://revistacenarium.com.br/futebol-feminino-ja-foi-atracao-de-circo-no-brasil/ Acesso em: 31 mai. 2025.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades,

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GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulher e esporte no Brasil: entre incentivos e interdições elas fazem história. Pensar a Prática, Goiânia, v. 8, n. 1, p. 85–100, 2006.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Gênero e esporte na historiografia brasileira: balanços e potencialidades. Tempo, v.19, n.34, p.45-52, jan/jun. 2013.

KELLNER, Douglas. Cultura da mídia: estudos culturais – identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.

SALVINI, Leila; SOUZA, Juliano de; MARCHI, Wanderley. Entre fachadas, bastidores e estigmas: uma análise sociológica do futebol feminino a partir da teoria da ação social de Erving Goffman. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 29, n. 4, p. 559-569, 2015.

SILVA, Erminia; ABREU, Luís Alberto de. Respeitável público… o circo em cena. Rio de Janeiro, Funarte; Ministério da Cultura, 2009.

OLIVEIRA, Pedro Paulo. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

TOFFOLETTI, Kim. Analyzing media representations of sportswomen—Expanding the conceptual boundaries using a postfeminist sensibility. Sociology of Sport Journal, v. 33, n. 3, p. 199-207, 2016.

* Alicia é mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.

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