Por Fernanda Mudesto Passos*
FICHA TÉCNICA
Título: 5 em Quadra (Starting 5)
Ano de produção: 2024
Direção: Peter J. Scalettar, Susan Ansman e Trishtan Williams
Duração: 10 episódios com média de 50 minutos
Classificação: 12 anos
Gênero: Série documental, Esportes
Países de Origem: EUA
A série documental “5 em Quadra” (Netflix, 2024) acompanha LeBron James, Jayson Tatum, Jimmy Butler, Domantas Sabonis e Anthony Edwards ao longo da temporada de 2023-2024, oferecendo mais do que uma imersão nos bastidores da NBA. Embora a premissa inicial pareça estar centrada no desempenho atlético e nas exigências físicas da liga mais competitiva de basquete do mundo, o grande trunfo da produção é a forma como ela entrelaça essas narrativas com reflexões íntimas sobre a paternidade enquanto experiência vivida, memória e legado.
O enquadramento escolhido é apresentado à pessoa espectadora logo no primeiro episódio: ao invés de abrir com imagens de corpos em disputa nas quadras, o documentário apresenta cenas de intimidade doméstica, onde esses homens são representados, primordialmente, como pais. Não se engane, as mais de oito horas de filmagem ainda nos oferecem uma boa dose de masculinidade viril em cenas explosivas de enterradas e bloqueios, mas o contato inicial que temos com os atletas traz um tom totalmente distinto.
Antes de qualquer take em quadra, vemos LeBron James se preparando para o Halloween com a sua família, relembrando momentos de sua infância. Jayson Tatum, por sua vez, é apresentado brincando de arremessos com seu filho, Deuce, referindo-se ao menino como seu “melhor amigo” e “mini-eu”. Já Jimmy Butler aparece na cozinha de sua casa tentando manter uma vela aromática acesa, enquanto seus filhos se divertem apagando-a continuamente. As cenas são simples, cotidianas, e parecem fazer parte de uma estratégia voltada para revelar dimensões afetivas eclipsadas pela imagem pública desses atletas. Complementarmente, a trilha sonora escolhida é muitas vezes o próprio silêncio, dando espaço para os relatos pessoais e para a paisagem sonora do comum – conversas, risadas e brincadeiras.
No segundo episódio, os arcos narrativos de Sabonis e Edwards são introduzidos, ampliando o espectro de paternidades da série. Domantas, filho do lendário Arvydas Sabonis, oferece uma perspectiva particular de continuidade e ruptura: ao mesmo tempo que repete muitos dos gestos e rotinas do pai, ele também busca uma relação mais próxima com seus filhos. Anthony, à espera de sua primeira filha, é mostrado em um processo de descoberta de novas responsabilidades, que conflitam com sua descontração jovial.
Ao colocar estes cinco atletas amplamente conhecidos e idolatrados em um raro lugar de vulnerabilidade, a série cria uma abertura para diálogos acerca das imagens de masculinidade que populam o imaginário social contemporâneo. Enquanto celebridades mundiais, os jogadores são tanto produtos quanto produtores culturais, capazes de reforçar ou tensionar práticas coletivas (Simões, 2017). Ademais, o universo esportivo configura-se, historicamente, como uma arena de construção de gênero, na qual valores ligados à força, à violência e à resistência emocional são muitas vezes ensinados e partilhados entre os homens (Bandeira; Seffner, 2013).
Pais que tentam e falham
Ao longo da série, a paternidade se revela como um espaço ambivalente: simultaneamente de aprendizado, falha, emoção e reafirmação pública. LeBron, que construiu sua trajetória com base em disciplina extrema e invulnerabilidade física, é mostrado despido de qualquer armadura quando compartilha o episódio em que seu filho, Bronny, sofreu uma parada cardíaca. O “Rei James” aparece frágil, impotente, dominado por um medo que nenhuma força muscular, preparo técnico ou capital simbólico seria capaz de conter. A imagem do pai atravessado pela possibilidade da perda, então, desmonta o mito do atleta invencível treinado para resistir ao cansaço e à pressão extrema.
No caso de Anthony Edwards, observa-se um diálogo com a ideia essencialista de que homens amadurecem mais devagar que as mulheres. O atleta, em vias de ser pai, diz que ainda se vê como um “moleque”, que gosta de jogar videogame e se divertir com os amigos, cabendo à sua parceira a tarefa de lembrá-lo que ele deve crescer. Além disso, ele expressa dificuldade de encaixar a paternidade em sua vida profissional, afirmando que preferia que a criança não nascesse durante um de seus jogos.
No entanto, a ironia do destino o confronta diretamente: sua companheira entra em trabalho de parto justamente durante uma partida e Edwards, em contraste com a persona despreocupada que vimos até então, corre para o carro sem nem terminar de trocar de roupa. Fugindo da narrativa de transformação instantânea pela paternidade, a série faz questão de mostrar que o Ant “de antes” ainda existe: após o nascimento, ele é filmado assistindo ao jogo no celular e manifestando sua frustração por não estar em quadra.
O quarto episódio da série, intitulado “Pais no Natal”, também aborda a tensão entre o desejo de estar presente no âmbito familiar e a valorização do desempenho esportivo. De um lado, os atletas celebram o privilégio de oferecer aos filhos uma infância com recursos e afetos que eles próprios não tiveram. De outro, o jogo no Natal é visto como uma honra esportiva, reservada apenas aos times de maior sucesso e apelo midiático, o que reitera a centralidade da performance pública na legitimação da masculinidade desses homens. Para Sabonis, especificamente, a não convocação de seu time para o jogo natalino é vivida com frustração, sentimento este que é compartilhado pela esposa do atleta, que lamenta a ausência de reconhecimento profissional do marido, ainda que isso signifique tê-lo em casa na data comemorativa.
Pais que são filhos
O documentário dá especial atenção às relações intergeracionais de paternidade, destacando não apenas o vínculo dos atletas com seus filhos, mas também com seus próprios pais. Domantas Sabonis, que dá continuidade ao legado de Arvydas – um dos maiores nomes do basquete europeu -, recorda em seus depoimentos a admiração que nutre pelo pai, mas também a dificuldade de lidar com uma presença física rarefeita durante sua infância. Hoje, como pai, ele busca romper com esse padrão, mas reconhece os limites impostos pela própria profissão. As chamadas de vídeo com os filhos, o esforço para celebrar pequenas conquistas mesmo à distância, o cuidado em criar momentos lúdicos quando está presente – como ao se fantasiar de Garibaldo – revelam essa tentativa de construir conexões que ele mesmo sentiu faltar.
Com Tatum, o basquete também foi meio de aproximação intergeracional, mas de uma maneira distinta. Justin – que na época do nascimento de Jayson tinha apenas 18 anos – conta que não tinha a mínima ideia de como ser um bom pai, mas sabia como ser um bom jogador de basquete. O pai do atual ídolo do Boston Celtics, então, relata que usou o esporte como base para construir sua relação com o filho, admitindo, no entanto, que seus métodos de ensino foram muitas vezes extremos. Jayson, agora adulto, ressignifica esse legado ao brincar de forma leve com Deuce, trazendo o jogo não mais como instrumento de disciplina ou fonte de cobrança, mas como um espaço compartilhado de afeto e diversão. A prática esportiva, nesse contexto, deixa de ser apenas uma arena de construção de masculinidade hegemônica (Connell; Messerschmidt, 2013) para se tornar uma mediação de vínculos emocionais entre gerações, abrindo fissuras na rigidez das tradições herdadas.
No caso de Jimmy Butler, a série opta por não se aprofundar no complicado passado familiar do atleta, marcado pelo abandono parental. Ao invés disso, nos é mostrado o retrato de um pai presente, que se orgulha de poder oferecer o apoio financeiro e emocional que não teve durante a infância e que, apesar de tudo, é também um filho atencioso e carinhoso. Em um dos momentos mais tocantes do documentário, Butler se vê obrigado a lidar com a perda do pai durante a temporada, optando por continuar em quadra logo após ter recebido a notícia. Questionado posteriormente sobre o ocorrido, o jogador olha diretamente para a câmera e diz, simplesmente: “Eu sou humano. Estou sofrendo agora enquanto conversamos e odeio falar sobre isso”. A confissão explicita a complexidade das performances contemporâneas de masculinidade, ao mostrar a batalha entre a cobrança por uma resistência emocional absoluta – potencializada pelas expectativas que entrecortam a esfera esportiva – e o reconhecimento da própria falibilidade.
Rupturas e reforços
Um ponto que merece atenção quando falamos sobre os tipos de masculinidade e paternidade privilegiados pela série é o fato de que quatro dos cinco atletas escolhidos são lidos como racializados. Em um contexto marcado por estigmas históricos que associam homens negros à ausência e à negligência parental (Rambert, 2021), essas representações desafiam narrativas racistas e oferecem novos modelos de identificação. A presença de Tatum e Butler como pais solo também acrescenta camadas importantes, mostrando que esses homens não apenas participam como coadjuvantes da vida dos filhos, mas vivem a paternidade em sua rotina diária.
Jimmy Butler em um momento de afeto com um de seus filhos

Porém, é preciso ter cuidado ao interpretar o documentário e os discursos nele presentes como um sinal de mudança estrutural. As imagens de paternidade que a série constroi se conectam com uma lógica midiática contemporânea que tem favorecido representações mais afetivas e emocionalmente abertas dos homens (Carballo, 2017). A sensibilidade, o cuidado e a vulnerabilidade se tornam novas formas de valorizar o masculino, sem que isso implique em uma redistribuição real das responsabilidades do cuidado ou em uma renúncia às estruturas que sustentam o privilégio de gênero. Trata-se de uma performance emocional compatível com as exigências culturais atuais, que pede homens mais “humanos”, mas não menos centrais.
Além disso, ao exibir a paternidade afetiva como algo excepcional, digno de reconhecimento público, práticas cotidianas de cuidado desempenhadas por mulheres acabam sendo relegadas aos bastidores. Tal contradição se faz presente na série por meio da escolha de destacar a rede de apoio masculina que sustenta a carreira dos atletas – médicos, técnicos, empresários, fisioterapeutas -, enquanto as trabalhadoras domésticas que mantêm o dia-a-dia do lar funcionando são deixadas à margem. Com exceção das companheiras e mães dos jogadores, as mulheres que atuam na organização familiar são mostradas apenas de relance, nos cantos das cenas, sem nome ou poder de fala.
No fim das contas, vale a pena assistir?
“5 em Quadra” é um documentário bem construído, que oferece de forma equilibrada momentos de risadas, reflexões e amor pelo basquete. Emocionalmente envolvente, ele acerta ao priorizar a paternidade como eixo narrativo, abrindo espaço para a humanização de figuras habitualmente representadas apenas como corpos fortes, estrategistas competitivos ou ídolos inalcançáveis. Mostra homens que tentam, erram e choram; homens que são pais e que, antes disso, foram filhos, atravessados por legados familiares que agora tentam reformular.
Ainda assim, é preciso não perder de vista que se trata de uma narrativa moldada dentro da lógica das celebridades esportivas, onde o capital afetivo é também capital simbólico, que reforça a posição desses homens como modelos de masculinidade legitimada. A sensibilidade e a presença paterna passam a ser valorizadas como atributos que potencializam a imagem pública do homem, mas não necessariamente implicam redistribuição efetiva das tarefas ou do poder. Trata-se, assim, menos de uma ruptura e mais de uma reconfiguração, que permite ao masculino se adaptar aos imperativos culturais do presente, sem renunciar à centralidade.
Assistir à série é, portanto, uma oportunidade de se emocionar, refletir e também de questionar: quais masculinidades estão sendo promovidas? Quem ganha e quem perde com essas representações? E, sobretudo, quais formas de cuidado continuam sendo deixadas fora de cena? Essas perguntas permanecem ressoando, muito além do apito final.
Referências
CARBALLO, Jokin Azpiazu. Homo Homini Lupus. ¿Es posible pensar la masculinidad desde la masculinidad? Masculinidades y feminismo. Barcelona: Virus Editorial, 2017.
BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. Futebol, gênero, masculinidade e homofobia: um jogo dentro do jogo. Espaço Plural, v. 14, n. 29, p. 246-270, 2013.
CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, v. 21, n. 01, p. 241-282, 2013.
DE sem-teto a astro finalista da NBA: a incrível trajetória de superação de Jimmy Butler. GE, 2020. Disponível em: <https://ge.globo.com/basquete/nba/noticia/de-sem-teto-a-astro-finalista-da-nba-a-incrivel-trajetoria-de-superacao-de-jimmy-butler.ghtml>. Acesso em: 01 jun. 2025.
RAMBERT, Omarr. The absent Black father: Race, the welfare-child support system, and the cyclical nature of fatherlessness. UCLA L. Rev., v. 68, p. 324, 2021.
SIMÕES, Paula Guimarães. O futebol e seus ídolos: David Luiz na Copa do Mundo de 2014. Rumores, v. 11, n. 21, p. 152-170, 2017.
*Fernanda é doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina COM864 Comunicação, Esporte e Gênero ofertada no PPGCOM da UFMG no semestre 1 de 2025 pela professora Ana Carolina Vimieiro.

