Por Venancio Celestino
O peso do trabalho das mulheres nos esportes segue sendo um desafio quando o assunto é adicioná-lo ao cenário que as mulheres já enfrentam em uma sociedade patriarcal. Isso porque a estrutura de divisão laboral se alicerça no trabalho doméstico potencialmente majorado às mulheres, gerando inúmeras manchetes de “como conciliar família e carreira”, voltadas majoritariamente ao público feminino. Existe a consideração de que a mulher que trabalha abdicaria da sua família, em uma posição marcada por um caráter negativo, em que o investimento de tempo na seara profissional torna-se culposo, como se houvesse um outro investimento que estaria sendo deixado de lado – no caso, a família, onde se subentende toda a lida doméstica, a gravidez e a parentalidade.
Diversas manchetes também enfatizam a maternidade como um peso, uma carga, um final de carreira, como também omitem o papel do homem, majoritariamente o pai, na criação dos filhos, colocando toda a carga no suposto papel de mãe. A soma da subtração dos homens com a consequente adição de carga às mulheres saem dos jornais e viram argumentos que afetam diretamente a existência da atleta, um empecilho que atinge as searas do controle e da obstrução, e, em certos casos, de exigência.


É possível notar que todas essas reportagens têm em comum o enfoque em conciliar a maternidade e a carreira, e citam como exemplos atletas mulheres, mesmo em casos em que há o parceiro na relação em situação semelhante – profissionalizado, ou mesmo em alguma carreira esportiva. O verbo causa a impressão – conota, a bem dizer – uma situação de contraste negativo, de não sintonia, de exclusão, e reflete diretamente em e para mulheres, por meio de exemplos, seja de super-heroínas da produtividade, seja como escolhedoras da carreira de mãe.
O caso Flávia Maria
Foi o que aconteceu com Flávia Maria, atleta brasileira de atletismo. Em 2015, ela conheceu o seu futuro ex-marido, que desde o início do relacionamento fazia súplicas de encerramento de seus treinos, para que ela morasse com ele. A insistência impactou seu rendimento, mas ela seguiu. Sua insistência em participar dos eventos lhe assegurava as bolsas e a possibilidade de sustento.
Após uma gravidez não prevista, em 2018, ela perdeu grande parcela de seus patrocínios, sendo obrigada a conciliar seus treinos com a criação da filha. Em 2023, pediu o divórcio, se mudando da cidade de Campo Mourão para Campo do Tenente, local onde, com uma maior rede de apoio, conseguiria investir profissionalmente. O que não sabia era que seu ex-companheiro passaria a utilizar sua profissão como argumento de suposto abandono, por ter a atleta que viajar com frequência para participar de competições, inclusive internacionalmente. Fazendo muita pressão, ela contou em suas redes sociais da crise que enfrentava quando das rodadas classificatórias, seus temores e medo de continuar, colocando o público a par pela primeira vez de sua situação particular.
Mas ainda assim ela reuniu forças e prosseguiu, tendo alcançado a classificação nas Olimpíadas de Paris em 2024, na qual obteve o décimo quinto lugar geral. Segundo ela, sua participação nas Olimpíadas de Paris foi por ela e pela filha – uma menção honrosa simbólica que também destacou o quanto o vínculo da parentalidade sobrecai sobre a mulher, que pareceu ter que se justificar afetivamente por estar fazendo valer seu direito ao trabalho esportivo.

É importante salientar o que é o abandono parental, segundo a legislação brasileira, de acordo com os artigos quarto e quinto do estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Percebe-se que a legislação brasileira é mais que neutra e justa quanto à divisão da responsabilidade, mas essa acertada determinação de coparentalidade ainda esbarra no desafio do patriarcalismo branco, histórico e estrutural para consolidar-se no real.
E que, no caso analisado, como existe uma distorção entre dever e responsabilidade a fim de inserir o elemento da culpa na decisão profissional de participar das competições que justificam sua existência esportiva.
Além de Flavia Maria, é possível mencionar outros casos notórios de desrespeito às mulheres esportistas, pela linha argumental de impedimento ser, além de misógina, absurda: a atleta iraniana Niloufar Ardalan, da equipe iraniana de futsal, foi proibida pelo marido, um jornalista esportivo, de disputar a Copa Ásia de 2015. E, no caso do Irã, as mulheres dependem da autorização de homens para viajar.
Em 2024, o assassinato covarde da atleta ugandense Rebecca Cheptegei chocou o mundo, supostamente motivado por uma disputa de terras: segundo a BBC, a atleta adquirira um lote para construir nova residência próxima a seus centros de treinamento. Outro caso aconteceu no Brasil pouco mais de uma década antes, em 2013: o feminicídio de uma atleta, Maraline Pardim, pelo ex-marido, com o qual tinha um filho e uma ordem de proteção da Lei Maria da Penha. Ela, atleta, decidiu abandonar a carreira profissional para se dedicar ao filho, pelo que provou ser duplamente atingida: pela dicotomia carreira x maternidade e pelo feminicídio por seu ex-marido.
Percebe-se que o impacto dessa suposta bifurcação entre existência familiar e profissão recai majoritária e diretamente sobre atletas mulheres, especialmente quando o assunto envolve paternidades. Vários atletas homens se beneficiam diretamente da vantagem histórica narrativa, querendo se apropriar do direito ao trabalho feminino no campo esportivo, e ditar o investimento que fazem às mulheres para se incluir e permanecer no esporte. E, além do sentimento de culpa, as mulheres ainda podem ser vitimizadas nos campos jurídicos ou mesmo sofrer violência física, desde restrições até a execução sumária.
O enfoque na palavra conciliação enquanto prerrogativa referente às mulheres em situação de profissão, em especial no campo esportivo, busca provocar a reflexão do impacto da construção da narrativa de impedimento de trânsito entre as esferas pessoais e profissionais de mulheres, em especial atletas, tornando-se, assim, verdadeiro verbo intransitivo. É necessário encerrar esse gatilho textual misógino mascarado de auxílio, uma vez que reforça uma fictícia subalternidade das mulheres atletas à parentalidade e a domesticalidade, poupando atletas homens de qualquer análise semelhante.
REFERÊNCIAS
O TEMPO. Desafio de ser mãe atleta: preconceito ainda é obstáculo para conquistas. Disponível em: https://www.otempo.com.br/sports/especializados/2024/5/12/desafio-de-ser-mae-atleta–preconceito-ainda-e-obstaculo-para-co.amp. Acesso em: 26 nov. 2024.
REVISTA ANA MARIA. Velocista luta pela guarda da filha: abandono parental. Disponível em: https://revistaanamaria.com.br/amp/noticias/comportamento/velocista-luta-pela-guarda-da-filha-abandono-parental.phtml. Acesso em: 25 nov. 2024.
GE. Mães no esporte: entre carreira e filhos, apenas dez brasileiras conquistaram medalhas olímpicas após a maternidade. Disponível em: https://ge.globo.com/olimpiadas/quadro-medalhas/esportes/noticia/2024/05/12/maes-no-esporte-entre-carreira-e-filhos-apenas-dez-brasileiras-conquistaram-medalhas-olimpicas-apos-a-maternidade.ghtml. Acesso em: 27 nov. 2024.
GE. Mulheres falam sobre carreira de atleta e gravidez: ninguém pensa no lado humano de ser mãe. Disponível em: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/mulheres-falam-sobre-carreira-de-atleta-e-gravidez-ninguem-pensa-no-lado-humano-de-ser-mae.ghtml. Acesso em: 27 nov. 2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS (TJDFT). Abandono afetivo. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/abandono-afetivo. Acesso em: 27 nov. 2024.
BONDE. Craque do Irã é impedida pelo marido de disputar a Copa Ásia de Futebol. Disponível em: https://www.bonde.com.br/esportes/futebol/craque-do-ira-e-impedida-pelo-marido-de-disputar-a-copa-asia-de-futebol-385674.html/amp. Acesso em: 27 nov. 2024.
GAÚCHA ZH. Quem era a campeã mundial de queda de braço vítima de feminicídio em Santo Antônio da Patrulha. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2023/01/quem-era-a-campea-mundial-de-queda-de-braco-vitima-de-feminicidio-em-santo-antonio-da-patrulha-clcmpn9ut005e0181dm1rryd9.html. Acesso em: 27 nov. 2024.

