Crítica de mídia: “Só devo satisfação a três mulheres”, a repercussão midiática da fala de Abel Ferreira

Álvaro Goulart (@alvaro_goulart) e Isabela Fernandes (@bela.giu)

Apesar de um notório avanço a respeito da participação das mulheres no esporte, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que as desigualdades nesse campo sejam superadas. Isso vale tanto para mulheres na prática esportiva em si, quanto para demais ocupações que tratam do esporte ou se envolvem com ele de alguma forma, por exemplo o jornalismo esportivo.

A parcela feminina da população enfrenta obstáculos diariamente para se inserir na mídia que realiza coberturas esportivas. Em pesquisa realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Puc-Rio, foram analisadas 1.184 publicações dos cadernos de esporte de três dos mais relevantes jornais do país, Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de S. Paulo, em julho de 2020 e junho de 2021. O resultado encontrado foi que apenas 13,3% das matérias eram assinadas por mulheres.

Além disso, em Survey realizada pelo Coletivo Marta com mulheres que já atuaram ou atuam na Comunicação Esportiva, 81% afirmaram que já se sentiram constrangidas por comentários machistas e 74% que já foram discriminadas por torcedores ou fontes. Assim, é possível perceber que o jornalismo esportivo para as mulheres é não só um meio difícil de se ingressar, mas também difícil de permanecer.

Partindo dessa lógica, analisaremos o caso de machismo sofrido pela jornalista da BandNews FM Alinne Fanelli em uma entrevista coletiva do treinador Abel Ferreira.

O caso

No dia 24 de agosto de 2024, o Palmeiras de Abel Ferreira havia conseguido uma ótima vitória por 5×0 contra o Cuiabá. Após o jogo, já na entrevista coletiva concedida aos jornalistas presentes no Allianz Parque, estádio do clube paulista, o técnico português, ao ser questionado pela jornalista Alinne Fanelli, da Band News FM, sobre uma provável contusão do lateral Mayke – pergunta coerente, principalmente pelo fato do jogador ter sido substituído chorando pelas dores que sentiu – respondeu de maneira grosseira: “Há uma coisa que vocês têm que entender. Eu tenho que dar satisfações a três mulheres só: minha mãe, minha mulher e a presidente do Palmeiras, que é a Leila (Pereira)”

Toda a situação gerou grande comoção com a repórter da BandNews FM e proporcionou um debate acerca da violência de gênero no jornalismo esportivo brasileiro.

Foto: Reprodução / Instagram Alinne Fanelli

Quem é Abel Ferreira?

Foto: César Greco / Palmeiras

Abel Ferreira é um ex-jogador e atualmente treinador de futebol português. Seu trabalho de maior destaque como técnico é na Sociedade Esportiva Palmeiras, time de São Paulo que tem Abel como técnico desde 2020.

O trabalho do treinador no Palmeiras é um dos mais vencedores da história recente do futebol brasileiro, com 10 títulos em 4 anos: 2 Copas Libertadores, 2 Campeonatos Brasileiros, 1 Copa do Brasil, 1 Supercopa do Brasil, 1 Recopa Sulamericana e 3 Campeonatos Paulistas. Porém, apesar de muito vitorioso, Abel frequentemente se envolve em polêmicas. 

Além do caso com Aline, o técnico já apresentou comportamentos agressivos com outros jornalistas. Um desses episódios ocorreu na zona mista do estádio Mineirão, quando Abel estava em uma discussão com o árbitro da partida contra o Atlético Mineiro, Ronei Cândido Alves, e, ao perceber que estava sendo filmado pelo repórter cinematográfico da Globo Pedro Spinelli, se irritou e tomou o celular de sua mão. Em outra oportunidade, Abel foi grosseiro com o jornalista Guilherme Gonçalves, do Litoral News, ao ser questionado sobre o comportamento tático do time mesmo após um jogador expulso. Abel respondeu: “Por isso que eu sou treinador e vocês são jornalistas. Se quiserem ser treinadores, vão à CBF, façam o curso e sentam-se aqui no meu lugar. É isso que vocês têm que fazer”

O treinador também já utilizou uma expressão xenofóbica em relação aos povos originários brasileiros para dizer sobre a organização do time alviverde: “Porque isso não é uma equipe de índios. Há uma organização e dentro dessa organização há liberdade para eles criarem […]”

Dessa maneira, fica clara a dificuldade de comunicação do treinador português quando questionado em determinadas situações, sendo grosseiro sempre que contrariado. No caso da repórter, algo chama mais atenção: apesar da questão de Alinne ter incomodado o treinador, é uma pergunta extremamente frequente no mundo esportivo. Assim, fica a dúvida: se um repórter homem fizesse a mesma pergunta de forma idêntica, a resposta de Abel também seria igual?

Repercussão e influência

Não havia nenhum pronunciamento da presidente do Palmeiras até o dia 22 de novembro, quando o portal UOL publicou uma entrevista exclusiva realizada pela jornalista Alicia Klein. Nessa matéria, Leila pontua que, na época do acontecimento, a cobrança para que ela falasse sobre o assunto a irritou, pois ela só se posiciona quando acha que deve, e saiu em defesa do seu treinador:

“Às vezes, eu não concordo com o posicionamento das mulheres. Naquele caso, não achei que ele foi machista. É difícil pra mim porque eu conheço o Abel, estou diariamente com ele. É diferente de pessoas que não convivem com ele diariamente. Eu não tenho dúvida nenhuma se fosse um homem perguntando aquilo, ele falaria a mesma coisa. O azar foi que era uma mulher. Ele errou, claro. Mas o Abel não é machista, então eu não vou me indispor com o meu treinador. Eu conhecendo como ele trata as mulheres, como ele é no dia a dia, eu não vou fazer isso”.

Porém, diferentemente de Leila, quase todos os veículos midiáticos que repercutiram a fala de Abel a consideraram, além de grosseira, uma manifestação de violência de gênero. Um dos principais veículos esportivos da Espanha, o jornal Marca, escreveu em um post na rede social X: ”A resposta  mais machista de um treinador a uma jornalista”.

Fonte: Reprodução X. Disponível em https://x.com/marca/status/1828371124423475351?t=l1hkHkNDfHfbrX4xnTEzlg&s=09
Acesso em 24/11/2024

Segundo Garcia (2017), o machismo pode ser considerado “a conduta de acreditar que o indivíduo do sexo masculino é superior, em qualquer aspecto, sobre o sexo feminino, acreditando que as mulheres devem ser submissas a estes (GARCIA et al. 2017, p. 01)”. Partindo desse espectro, a resposta de Abel tenta passar uma sensação de respeito, mas apenas a um grupo seleto de mulheres, e sugere que a repórter, por não fazer parte desse grupo, pertence a uma lógica de subordinação e não merece ter sua pergunta respondida.

No dia seguinte do ocorrido, Abel Ferreira publicou em seu perfil do Instagram uma nota oficial em conjunto com o Palmeiras se desculpando pelo ocorrido, mas não conseguiu apaziguar os comentários negativos, que alegavam que o treinador tentou se justificar e não admitiu seu erro, ou até mesmo que a nota havia sido escrita pela assessoria do time paulista apenas para tentar “limpar” a imagem de Abel.

Fonte: Reprodução Instagram. Disponível em https://www.instagram.com/p/C_GWpo1N1wq/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==  Acesso em: 24/11/2024

Nessa situação, o desrespeito de Abel foi tão nítido que até a maioria da torcida palmeirense, que o idolatra pelas campanhas incrivelmente vitoriosas, não foi capaz de defendê-lo. Porém, com o posicionamento de Leila Pereira é possível questionar que, sem todos os títulos conquistados, talvez a presidente tivesse sido mais crítica à postura do português. A frase “Não vou me indispor com meu treinador” entrega certo receio de Leila, que revelou o desejo de renovar com Abel, cobiçado por times mundo afora, por mais 2 anos (atualmente o contrato do treinador vai até o final de 2025).

Também no X, o comentário da jornalista Anita Efraim proporciona outra reflexão. Até onde o sucesso na performance esportiva blinda Abel Ferreira de determinadas críticas?

Fonte: Reprodução X. Disponível em https://x.com/niefraim/status/1827510207888408698?t=Ytr5vomXhNMMv1B2FZHZ2Q&s=19 Acesso em 24/11/2024

Ainda no post de Anita, alguns torcedores tentaram justificar a fala do técnico, dizendo que, para um jornalista homem, Abel responderia da mesma maneira.

Com argumentos rasos, as ideias acima caem em uma tentativa de generalizar a fala para apenas um caso de falta de educação. Na frase de Abel, o destaque para o gênero da jornalista carrega a ideia de que, por ser mulher, a jornalista é menos e merece menos, não só que os homens, mas que um grupo seleto de mulheres citadas por ele e que seriam as únicas que, apesar de mulheres, poderiam ocupar uma posição hierárquica acima dele.

Conclusão

Após a análise realizada sobre todo o caso Abel Ferreira e sobre as questões de gênero no âmbito desportivo, fica claro como o mérito esportivo, principalmente ligado a resultados e títulos relevantes, se sobrepõem de maneira perigosa a diversas causas sociais, como a questão do machismo nos esportes em diversas áreas, seja nos campos ou nas redações. Situações como a ocorrida com o técnico português, na qual ações moralmente questionáveis realizadas por homens apresentam reações mais brandas devido ao seu valor como profissional, não são novidade. Casos como do treinador Cuca – acusado de abusar de uma menor de idade ainda na época em que era jogador – e do ex-goleiro Bruno – mandante do assassinato da ex-companheira Eliza Samudio – provam que, mesmo com situações bárbaras, propostas relevantes, dentro de seus determinados contextos, ainda são feitas. Obviamente, o que Abel Ferreira fez é bem menos grave do que o que Cuca e Bruno fizeram, porém, a comparação serve para demonstrar que, se até criminosos conseguem ainda serem relevantes devido aos seus trabalhos no esporte, situações como a do português serão certamente escanteadas em nome de uma manutenção que vise apenas bons resultados esportivos. 

O futebol, como recorte de uma sociedade problemática, pode ser um vetor para que pautas sociais, como a questão de gênero, sejam realmente levadas a sério pela massa que o acompanha, visando não somente acabar com os casos frequentes de violência relacionados a jogadores e treinadores, mas também propiciar reflexões ao grande número de pessoas que o assistem.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Nathaly Cristina. NATIVIDADE, Carolina dos Santos Jesuino da. A naturalização da violência contra a mulher. Brazilian Journal of Development. Curitiba, 2020.

PACHECO, Leonardo Turchi; SILVA, Silvio Ricardo da. “Mulheres e jornalismo esportivo: possibilidades e limitações em um campo masculino”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e61002, 2020.

SANTOS, Cecília MacDowell Santos. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as Mulheres e Violência    de    Gênero:    Notas    Sobre    Estudos    Feministas    no    Brasil.    Revista    Estudios Interdisciplinários de America Latina y El Caribe. Israel, Vol. 16, no 1, 2005. Disponível em:<http://eial.tau.ac.il/index.php/eial/article/viewFile/482/446&gt;. Acesso em: 24 de novembro de 2024

Deixe um comentário