Por Duda Sperandio (@duda.spe) e Vitória Alves de Sales (@alvess_vitoria_)
Em 1987, Alexi Stival, conhecido como Cuca no meio esportivo, foi acusado de estuprar uma menina de 13 anos, junto aos jogadores Eduardo Hamester, Henrique Etges e Fernando Castoldi, do Grêmio, em Berna, na Suíça. Após quase um mês detidos, os quatro jogadores foram liberados. Dois anos depois, Cuca, Eduardo e Henrique foram condenados a 15 meses de prisão por atentado ao pudor com uso de violência. Mesmo assim, como o Brasil não extradita seus cidadãos, eles nunca cumpriram a pena.
Nome de Cuca e outros jogadores no processo arquivado na Suíça — Foto: Reprodução Jornal Nacional
Em 2023, cerca de 40 anos após o caso, Cuca foi contratado pelo Corinthians, mas sua passagem foi breve devido à repercussão negativa relacionada à condenação na Suíça. Após comandar o time em apenas duas partidas, ele pediu demissão em abril de 2023.
Já em janeiro de 2024, a Justiça Suíça anulou a condenação de Cuca por estupro, alegando que ele havia sido condenado à revelia, sem representação legal no julgamento original. A decisão determinou a anulação da pena e o pagamento de uma indenização ao técnico. Após a anulação, Cuca assumiu o comando técnico do Athletico Paranaense em março de 2024, onde atuou até o final de junho.
A cultura do estupro no futebol
A expressão “cultura do estupro” refere-se a um contexto social no qual a violência sexual é normalizada ou minimizada, muitas vezes pela aceitação de comportamentos que perpetuam a desigualdade de gênero e culpabilizam as vítimas. No futebol, um esporte amplamente dominado por homens e permeado por valores tradicionalmente masculinos, essa cultura se manifesta de forma explícita e implícita.
O caso Cuca exemplifica como a dinâmica de poder e idolatria em torno de jogadores e técnicos pode servir para silenciar crimes graves, como a violência sexual. A percepção pública de figuras como o Cuca é frequentemente protegida por narrativas que reforçam o status quo. Essas narrativas, amparadas por veículos de imprensa e comentários de torcedores, muitas vezes incluem justificativas para os atos dos acusados ou desvalorizam as denúncias, especialmente quando envolvem mulheres.
Comentários exaltando a contratação de Cuca pelo Athletico – Foto: Reprodução Instagram
No Brasil, o machismo estrutural contribui para essa cultura. A construção de ídolos esportivos como figuras acima do bem e do mal gera um escudo de proteção que dificulta a responsabilização desses homens. Além disso, a pressão social para manter o “espetáculo” do futebol tende a encobrir escândalos e perpetuar a ideia de que a vida pessoal dos jogadores não deve interferir em suas carreiras, mesmo quando se trata de questões graves, como o caso em Berna, na Suíça.
Cobertura no Caso Cuca
A cobertura jornalística sobre o caso Cuca é marcada por um paradoxo: enquanto os veículos destacaram o crime na década de 1980, o tratamento dado ao tema em tempos mais recentes revela lacunas e estratégias discursivas que minimizam a gravidade do ocorrido.
Na década de 1980, a imprensa esportiva reproduziu elementos de sensacionalismo, com foco em detalhes que mais exploravam o caso como um “escândalo” do que abordavam a gravidade da violência cometida. Frases que sugeriam a responsabilidade da vítima, como “ela parecia ser mais velha” ou “Tudo começou quando Sandra tirou a blusa”, exemplificam a parcialidade e o machismo que marcaram as coberturas.
Nos anos recentes, com o retorno de Cuca aos clubes de ponta, como Athletico e Corinthians, a cobertura passou a ser fragmentada. De um lado, veículos que questionaram a contratação do técnico devido à sua condenação; de outro, uma significativa parcela da imprensa que tratou o caso como um “episódio superado”. A narrativa de “redenção” foi muito utilizada, reforçando estereótipos sobre o perdão e a trajetória de superação de homens condenados, enquanto a vítima e os detalhes do caso permanecem relegados ao segundo plano.
Carta aberta de Cuca após contratação em Athletico – PR – Foto: GP1 Esporte
Estudos sobre a cobertura contemporânea mostram que, ao abordar o retorno de Cuca aos clubes, muitos veículos focaram exclusivamente em sua trajetória profissional, ignorando o impacto do caso em debates sobre violência de gênero e ética no futebol. A falta de contextualização crítica é um exemplo de como a mídia muitas vezes se alinha a interesses institucionais ou de mercado, em detrimento de uma cobertura mais responsável e comprometida com a justiça social.
Na reportagem “Cuca: entenda mais sobre o caso do estupro de jovem, em 1987”, do Metrópoles, a controvérsia gerada pela contratação de Cuca por clubes como Corinthians e Athletico PR evidencia um dilema ético. Apesar dos protestos de jogadores, torcedores e movimentos sociais, nesse caso, a cobertura adotou uma narrativa que minimizou a gravidade da condenação na Suíça. Assim, a ênfase recaiu sobre a trajetória esportiva do técnico, relegando a discussão sobre violência de gênero e justiça às margens do debate público.
Por outro lado, as manifestações públicas são destaque em outra matéria jornalística. Na reportagem, “Torcedoras do Corinthians protestam contra Cuca no Parque São Jorge; veja vídeos”, do Portal Ge, é constatado que o Corinthians enfrentou forte pressão da torcida e de movimentos feministas, que protestaram com faixas e declarações como “Respeita as Minas”. Essas ações buscaram expor a incoerência entre a contratação de Cuca e o discurso progressista que o clube vinha promovendo. Dessa vez, o veículo oferece espaço para questões sociais que envolvem o tema.
Outras análises sobre a cobertura do caso
A análise feita pela jornalista Ana Thais Matos sobre o tratamento dado ao caso de Cuca no contexto da sua contratação pelo Corinthians também traz tensionamentos importantes. Em sua análise, a autora critica como parte da mídia e do clube abordaram o tema, ressaltando que a condenação por estupro na Suíça em 1987 não pode ser relegada a um “episódio do passado”. Em entrevistas e textos, essas profissionais destacaram a importância de uma reflexão mais profunda sobre ética no futebol, sublinhando a responsabilidade da mídia em expor a gravidade do caso e evitar narrativas que minimizem a violência de gênero. Em outro momento, Ana Thais também apontou como o “pacto de masculinidade” frequentemente impede uma cobertura mais crítica no esporte, uma questão estrutural.

