Em fevereiro de 2020, um caso de assédio envolvendo a zagueira Vitória Calhau e o mascote do Clube Atlético Mineiro, time pelo qual ela atuava, virou pauta nos mais diversos canais jornalísticos, portais e nas redes sociais. O episódio aconteceu no intervalo de uma partida entre Atlético e Caldense, quando o time alvinegro apresentava sua equipe feminina à torcida.
Enquanto as atletas estavam enfileiradas em campo, o mascote Galo Doido se aproximou, segurou a mão de Vitória e pediu que ela desse uma “voltinha”. Em seguida, esfregou as mãos e as colocou sobre a boca antes de se afastar. O episódio só ganhou repercussão midiática depois que o clube resolveu se manifestar na manhã seguinte, como é possível observar nessa matéria do GE, que também traz o vídeo do ato de machismo conduzido pelo mascote.
A partir disso, o clube optou pela utilização de uma estratégia de gerenciamento de crise muito focada na midiatização do caso e exposição excessiva da imagem da atleta, por vezes de maneira constrangedora para Calhau. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento ou incentivo à campanhas de conscientização, educativas, ou que ao mínimo demonstrassem uma reforma nas práticas institucionais do Atlético foi praticamente inexistente.
Como consequência, abriu-se um espaço para a deslegitimação da seriedade do assunto, visto que a situação de assédio foi tratada pelo próprio clube como um caso isolado na sociedade e um simples “erro humano”, passível de resolução a partir de um mero pedido de desculpas por parte do mascote, realizado de forma espetacularizada.
Isso porque, quatro dias após o ocorrido, o Atlético publicou em suas redes sociais um vídeo de pouco mais de três minutos e meio, centrado na “retratação” do mascote Galo Doido. Na postagem, que conta com a legenda “Não é só um pedido de desculpas, é um aprendizado”, o mascote encena a escrita de uma carta à mão, caminha até o centro de treinamento das atletas e entrega o documento com suas palavras de arrependimento para todas as jogadoras presentes. De frente para Calhau, o mascote se ajoelha e o momento é incentivado por uma salva de palmas quase cenográfica. A zagueira, então, começa a chorar.
Para além do constrangimento inicial, Vitória ainda foi submetida à leitura em voz alta da carta e, sob os olhares da então coordenadora de futebol feminino do Galo, das companheiras de time e da equipe de marketing e comunicação do clube, disse aceitar o pedido de desculpas do mascote, ainda em lágrimas.
“Tanto no meu Instagram quanto em outras redes sociais falaram que foi eu que mexi com você, para você mexer comigo, que eu fiquei com graça, que eu fiquei batendo palma para você. Eu, Vitória Calhau, desculpo. Mas tanto aqui quanto em qualquer outra equipe, isso não pode se repetir mais.”
Disse Vitória em vídeo postado pelo Atlético Mineiro.
Após isso, foi incentivado que houvesse mais uma salva de palmas.
Em entrevista para o Seleção Sportv, a então dirigente de futebol feminino do Atlético, Nina de Abreu, chamou a situação de assédio envolvendo o mascote do clube de “infelicidade pontual do nosso funcionário”. “(…) Um dos funcionários mais queridos, se não o mais, passível de erro. Ele admitiu o erro, foi perdoado pela jogadora. Vamos aproveitar esse espaço para nos redimir, pedir perdão para a sociedade”, completou Nina.
A postura adotada pelo clube e seus responsáveis, portanto, excluiu e invisibilizou a voz da própria jogadora envolvida no caso. Calhau participou dos posicionamentos do Atlético de forma passiva, como sujeita dos pedidos de desculpas realizados de forma espetacularizada ou sendo apenas mencionada brevemente pelos porta-vozes da instituição.
Como consequência disso, a reação da torcida nas redes sociais demonstrou pouca solidarização com a situação da zagueira. Os ataques à Calhau só se tornaram mais frequentes na medida em que o clube publicava alguma nota sobre o acontecido ou quando algum representante falava sobre o caso.
Comentários de torcedores na postagem sobre entrevista da ex-coordenadora de futebol feminino do Atlético ao Sportv.
Sem espaço para fala dentro do próprio clube, o posicionamento de Calhau sobre o ocorrido foi concedido à ESPN, em matéria produzida por Mariana Spinelli e Victoria Leite. Na ocasião, a zagueira revelou o desconforto sentido por ela e a influência do caso em sua rotina.
“Eu me senti um objeto, um objeto sexual. Eu não estava ali por brincadeira ou para foto, eu estava ali para falar: eu jogo futebol. Sou do futebol feminino do Atlético. (…) Eu fiquei envergonhada. Eu estava com vergonha de aparecer no CT, estava com vergonha de ir treinar”, relatou a zagueira.
O posicionamento da atleta se distancia de maneira lamentável aos materiais produzidos pelo clube nos dias que sucederam o acontecimento. Por um lado, o Atlético diminuía o ocorrido e o tratava como um fato isolado, que havia sido resolvido internamente. Por outro, a primeira entrevista cedida por Calhau dias após o caso trazia indícios do evidente incômodo da atleta com a situação de assédio em seu local de trabalho.
A perspectiva de Calhau em momento algum foi acolhida pelo clube publicamente, visto que as postagens eram todas voltadas à uma “resolução” do problema de forma privada, entre os envolvidos no caso. Não foram divulgadas campanhas de conscientização, e o posicionamento institucional do clube demonstrou zero preocupação com a integridade de suas atletas.
Menos de um mês após a situação de assédio, Vitória rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho, e foi anunciado que ela passaria por cirurgia e passaria algum tempo fora dos gramados. Dentre os comentários da torcida sobre o infortúnio, alguns internautas desejaram mal à atleta, culpabilizando-a pela repercussão negativa atrelada ao Atlético após o ato machista do mascote Galo Doido.
Comentários feitos em postagem da página Fala Galo, comemorando a lesão de Vitória Calhau.
Em resposta aos abusos sofridos por Vitoria Calhau, o então diretor de comunicação do Atlético, Domênico Bhering, disse ao BHAZ apenas que o Galo lamentava os ataques e sabia da frequência com a qual estes vinham acontecendo. “Conversamos com a Nina e com o departamento jurídico e, por se tratar de algo pessoal, se ela quiser tomar providências, o departamento está à disposição para orientá-la quanto a isto”, completou Bhering em nota ao portal.
Mais uma vez, um representante do Atlético vinha à público e tratava a situação como um caso isolado, apesar de admitir saber da frequência das mensagens de ódio direcionadas à Calhau. Ao tratar o acontecimento como “algo pessoal”, Bhering exime o Galo de obrigação, mesmo se tratando de uma atleta que representava o time e deveria ter seus direitos de apoio básico preservados e respeitados. Além disso, o diretor atribui à zagueira a responsabilidade de correr atrás dos responsáveis jurídicos para resolver a situação, “se ela quiser”, ao invés de oferecer proteção à atleta frente a um episódio ocasionado por um funcionário contratado do clube.
Hoje, quatro anos depois do ocorrido, Calhau é atleta do Cruzeiro e em alguns momentos fala sobre a sua experiência no rival alvinegro durante entrevistas. Em entrevista para o Globo Esporte em outubro deste ano, ela comentou sobre a forma como se sentia no Atlético após o ocorrido. “No meu antigo clube eu não me sentia… não era sobre ser valorizada, mas era amador ainda as questões sobre o futebol feminino. (…) Mas eu não gosto de entrar nesse critério do antigo clube. Gosto de falar que agora estou em um lugar que me apoia, sempre me dá o melhor, uma ótima estrutura e, por isso, pra mim é o lugar certo, o lado certo.”.
Calhau foi dispensada do Atlético logo após voltar da lesão no joelho, sem receber o apoio necessário pelo clube, tanto na questão do caso envolvendo o mascote Galo Doido, quanto no processo de readaptação aos campos, visto que não teve nem ao menos a chance de treinar pelo Galo novamente. O clube não foi responsabilizado pela mídia de amplo alcance diante de tais negligências e sérias acusações, mas Calhau continua sendo referida pelo caso de assédio e tendo que responder sobre ele.
Na carreira como profissional, Calhau já vestiu a camisa do Atlético. Ela chegou a Minas Gerais em 2020, mas sequer aproveitou a passagem. Primeiro, sofreu assédio do mascote Galo Doido no dia da apresentação – o funcionário a girou e esfregou as mãos. Depois, lesionou o joelho e se ausentou por mais de um ano. Quando estava pronta para atuar, foi dispensada.
Título da matéria do GE sobre a convocação de Vitória Calhau a seleção brasileira.
As diversas associações do episódio com a atleta são um reflexo da maneira como a mídia e o próprio futebol lidam com as vítimas desse tipo de violência. Em vez de reconhecerem a trajetória e conquistas da jogadora, as matérias frequentemente a reduzem ao episódio de assédio, perpetuando a vítima como símbolo de uma experiência traumática. Assim, reduzem o episódio sistêmico e frequente da sociedade a um caso completamente epiśodico e excepcional.
Tal atitude é também vista na forma como o Atlético Mineiro tratou o caso. Ao longo do episódio envolvendo a jogadora Calhau e as acusações de assédio, as atitudes da instituição geraram diversas controvérsias pela sua falta de posicionamento firme e pela postura institucional voltada para minimizar a gravidade do incidente. O clube, ao individualizar o problema e não fazer um posicionamento mais amplo sobre a cultura de assédio, contribui para perpetuar a visão de que os casos de abuso são acontecimentos isolados, e não reflexos de uma problemática sistêmica que atinge a sociedade como um todo.
O silêncio institucional e a tentativa de se distanciar do problema resultam em consequências a longo prazo. Além de impedir a criação de políticas públicas mais eficazes para o combate ao assédio dentro do clube e do futebol em geral, essa postura reforça a falta de responsabilidade da entidade em educar seus jogadores e funcionários sobre questões de respeito e igualdade de gênero. Quando o Atlético individualiza o problema, ele reforça a ideia de que ações de assédio são exceções, não abordando a raiz do problema, que é a cultura machista e a tolerância ao abuso dentro do ambiente esportivo.
A mídia também falha ao abordar o caso de maneira superficial. Em matérias como a do No Ataque e a do GE, o foco está em relembrar o incidente de assédio sem criticar o Atlético Mineiro. Essas matérias não questionam o clube sobre a sua postura em relação ao caso ou sobre as condições do futebol feminino, que segue marginalizado e sem visibilidade. Em vez disso, a narrativa foca no esforço individual da jogadora que superou o trauma, sem aprofundar a discussão sobre o comportamento do clube ou o impacto do assédio no ambiente esportivo. Isso reforça a ideia de que o caso foi apenas um “episódio isolado”, sem relacioná-lo a uma cultura mais ampla de abuso no futebol.