Crítica de mídia: Caso Jenni Hermoso e os avanços da cobertura midiática do assédio no futebol feminino

Por Ana Luiza Nunes, Isabella Neres e Malu Moura

Com bilhões de torcedores e milhões de jogadores em todos os cantos do planeta, o futebol é considerado o esporte mais popular do mundo, atravessando diversas fronteiras, culturas e línguas. E por ser um fenômeno tão presente no cotidiano das pessoas, o futebol não deveria ser pensado sem a abordagem de questões que fazem parte da sociedade, como a violência de gênero.

Apesar dos direitos conquistados ao longo da história, além dos avanços nas discussões sobre gênero, as mulheres ainda enfrentam grandes desafios relacionados à pressão social, desigualdade de gênero e assédio em seu dia-a-dia, o que não é diferente no mundo do futebol.

Em 2023, a seleção feminina da Espanha conquistou sua primeira Copa do Mundo após derrotar a Inglaterra por 1×0 no estádio Olímpico de Sydney, na Austrália. Durante as celebrações da vitória histórica, a jogadora espanhola Jenni Hermoso foi assediada pelo então presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, que beijou a atleta na boca, sem o seu consentimento. 

A cena foi transmitida ao vivo, o que gerou uma grande indignação, tanto entre as jogadoras da seleção espanhola quanto no público em geral. Hermoso, visivelmente surpresa e desconfortável com a situação, comentou sobre o assunto em uma live pós-jogo no vestiário: “É, mas eu não gostei”. 

De imediato imagens do caso viralizaram, com uma onda de críticas, protestos e discussões sobre assédio no esporte se espalhando pelas redes sociais. À Rádio Marca, Rubiales disse inicialmente que “existem idiotas em todos os lugares. Quando duas pessoas têm um gesto de carinho, isso não é importante, não podemos dar atenção à idiotice. Somos campeões [do mundo] e vou focar nisso.”

No entanto, o caso ganhou novas dimensões quando figuras da Espanha e da comunidade internacional passaram a se manifestar contra o gesto de Luis Rubiales, incluindo entidades como a FIFA, a UEFA e o Primeiro-Ministro da Espanha, Pedro Sánchez. Além disso, muitos espanhóis, especialmente mulheres, foram às ruas em várias cidades do país, exigindo a renúncia do então dirigente da RFEF.

Todas as jogadoras da seleção feminina da Espanha se manifestaram publicamente, exigindo que Rubiales fosse responsabilizado, e também, ameaçaram boicotar futuros jogos da seleção caso ele não fosse afastado de seu cargo. Elas criaram, inclusive, o Movimento #SeTeCreenSeTeRespetan (Se você acredita, você respeita) como uma forma de defender a dignidade e os direitos das mulheres no esporte. 

Em entrevista à BBC Mundo, a goleira da seleção espanhola, Catalina Coll, lamentou como o acontecimento ofuscou a conquista da equipe, auxiliando na manutenção dos mesmos protagonistas de sempre, ou seja, os homens.

“É uma pena que nós, as 23 jogadoras, não sejamos as protagonistas. É decepcionante que agora todos te parem nas ruas para te perguntar do beijo e não te digam: parabéns pela Copa do Mundo”.

Catalina Coll, goleira da seleção espanhola

A fala da goleira é um reflexo sobre como a cobertura feita pela mídia tem uma importância latente na percepção do mundo sobre o futebol feminino e sobre casos de assédio. A escolha das palavras e do enquadramento podem influenciar direta ou indiretamente no posicionamento dos leitores quanto à situação e em como as pessoas envolvidas vão ser percebidas por eles.  

Mas apesar de o jornalismo estar longe de um ideal, é possível perceber avanços na forma como o caso foi retratado pelos veículos de mídia em comparação com situações anteriores.

Em 2019, a fisioterapeuta Carolina Rozo e a jogadora Angie Lizeth Cano, na época menor de idade, ambas da seleção sub-17 colombiana, denunciaram o técnico Didier Luna e o preparador físico Sigifredo Alonso por assédio sexual e moral. Segundo as vítimas, os casos aconteceram durante a preparação para o mundial de 2018 e, além de comentários desagradáveis de teor sexual, o preparador físico teria ainda invadido o quarto de Angie em uma tentativa de abusar da jogadora.

Diante da gravidade da denúncia, um portal colombiano de mídia publicou uma matéria ouvindo o lado de Didier Luna, depois que o homem já havia sido condenado pela Justiça do país, em 2020. A escolha das palavras na manchete em momento algum mencionava o assédio ou os crimes cometidos pelo treinador e, até mesmo no texto, o foco era dizer que a família de Luna estava sofrendo muito e que ele não conseguia mais nem ‘levar o sustento para a casa’. O título da reportagem foi “Didier Luna se defende: ‘Lutarei para provar minha inocência’”.

Já no caso de Hermoso, três anos após a publicação da matéria anterior, mesmo ouvindo o lado do assediador, as manchetes passaram a chamar a atenção para o crime cometido. Em um portal espanhol, foi utilizado o título “Rubiales pede perdão depois de seu beijo forçado a Hermoso”, admitindo e expondo a situação ocorrida. Outro veículo espanhol foi além e disse ainda que o pedido de desculpas de Rubiales só aconteceu depois de uma grande pressão popular: “Rubiales pede desculpas após avalanche de pedidos de demissão pelo beijo a Jenni Hermoso”. Apesar de não citar no título da matéria, logo no primeiro parágrafo, o portal reforça que o ato foi sem o consentimento da jogadora.

Outra mudança interessante foi na forma de retratar os acontecimentos sem, indiretamente, amenizar a culpa do assediador. Um escândalo na seleção venezuelana, em 2021, revelou uma situação parecida com as anteriores, em que 24 jogadoras se juntaram e denunciaram o técnico Kenneth Zseremeta e o preparador físico Williams Pino, por casos de assédio cometidos entre 2013 e 2017. Ao publicar a notícia, um portal do país usou o título “Federação Venezuelana pede investigação de ex-técnico feminino”. O nome do treinador e o motivo da denúncia sequer são citados na manchete, o que deixa a possível causa em aberto e só quem tiver o interesse de ler a matéria saberá o que realmente aconteceu. Por sua vez, na ocorrência de Hermoso, um título de um portal espanhol dizia: “O beijo forçado que ofuscou um feito mundial: desculpas forçadas, aborrecimento e por que isso nunca deveria ter acontecido”, reafirmando claramente o assédio sofrido pela jogadora.

Além de toda a repercussão nos veículos de mídia tradicionais, o assédio sofrido por Jeni ganhou os holofotes em todas as redes. Com a pressão da imprensa e da população, o caso da jogadora teve um desfecho diferente de muitas outras, no que se refere a punições e a evolução da conscientização sobre o assédio sexual.

Após a denúncia de Hermoso e uma investigação interna da RFEF, Rubiales foi suspenso pela FIFA enquanto aguardava julgamento. Além disso, ele enfrentou um processo judicial em setembro de 2023, acusado de assédio sexual e coercitivo. Em dezembro de 2023, a Corte Superior de Justiça da Catalunha rejeitou a possibilidade de uma ação judicial por parte da jogadora, mas o debate sobre o assédio sexual no esporte permaneceu intenso. A pressão pública foi fundamental para que o caso fosse tratado com seriedade e Rubiales perdesse seu cargo, algo que provavelmente não ocorreria em um caso semelhante em décadas passadas.

O assédio sexual no esporte era muitas vezes ignorado, minimizado ou encoberto. Mesmo em casos conhecidos de abusos em outras modalidades, como a ginástica, onde treinadores abusaram de atletas jovens (exemplo de Larry Nassar nos EUA), as punições, quando ocorreram, eram muitas vezes brandas ou demoradas. Nassar, por exemplo, foi condenado em 2018 após anos de alegações, mas o processo foi lento e as vítimas não foram ouvidas prontamente. Em comparação, Rubiales enfrentou uma investigação mais rápida e uma pressão pública mais imediata.

O caso Rubiales é representativo de uma maior conscientização sobre as práticas abusivas dentro do esporte. No passado, o comportamento de figuras como Rubiales poderia ser visto como uma “exagero” ou parte da cultura do esporte, mas a crescente sensibilização sobre assédio e abuso levou a ações mais rigorosas.

Depois que Jenni apresentou queixa por agressão sexual contra o presidente afastado da RFEF, ela não foi convocada pela técnica Montse Tomé para os jogos da Espanha. A justificativa apresentada pela comissão foi de que a decisão teria sido tomada para “proteger” a atleta.

Com a não convocação, Jenni expressou sua mágoa: “Não entendi e nunca vou entender”, disse Hermoso em entrevista coletiva em La Cartuja, em Sevilha. “Doeu e ainda dói, mas é algo que aconteceu agora e o melhor para mim é estar aqui, vestindo a camisa novamente”, completou a jogadora. 

É válido ressaltar que atletas masculinos dificilmente enfrentam punições ou exclusões por comportamentos ou acontecimentos fora de campo com a desculpa de “proteção”. Mulheres são tratadas de maneira diferente, com expectativas adicionais e muitas vezes prejudiciais. Isso sublinha uma disparidade de gênero no tratamento de atletas, embora tal tratamento desigual não seja justificável em nenhum contexto.

Embora o episódio tenha gerado um desconforto, a situação não se repetiu e o caso não teve um impacto negativo direto na carreira de Jenni Hermoso, que continuou jogando pela seleção e seus clubes. Diferentemente de casos como o da patinadora francesa Sarah Abitbol, que após denunciar publicamente o treinador Gilles Beyer por abuso sexual, sofreu uma enorme pressão, tanto do público quanto das autoridades esportivas, o que afetou diretamente a continuidade de sua carreira.

Neste ano, Jenni Hermoso recebeu o Prêmio Sócrates de Atleta do Ano, uma das honrarias mais importantes do esporte mundial, por sua atuação excepcional no futebol feminino. O prêmio é uma homenagem não apenas às conquistas esportivas, mas também ao impacto social e cultural da atleta, refletindo o compromisso com os valores do esporte e da sociedade. 

A sua escolha para o Prêmio Sócrates em 2024 foi vista como um reconhecimento da sua resiliência diante da adversidade e de seu compromisso com os direitos das mulheres no esporte em um momento crítico para o futebol feminino e para as mulheres no esporte de forma geral.

O caso é um exemplo de como figuras de autoridade no esporte podem abusar de seu poder e como as mulheres têm sido historicamente subestimadas ou desvalorizadas no mundo do futebol, mas também destaca a crescente resistência e a força das jogadoras para mudar esse panorama. O desenrolar do caso Jenni Hermoso e Luis Rubiales é um marco na evolução das punições e da resposta institucional ao assédio sexual no esporte. A comparação com casos mais antigos evidencia que as punições estão se tornando mais rigorosas e a sociedade mais atenta ao problema. 

Indicação cinematográfica: 

Documentário “#SeAcabó: Diario de las campeonas”, disponível na Netflix. 

O documentário aborda a luta das jogadoras da seleção espanhola de futebol feminino contra a Federação Espanhola de Futebol (RFEF) e suas práticas de discriminação e falta de reconhecimento no esporte. 

A produção busca expor a jornada das jogadoras e a transformação do futebol feminino na Espanha, abordando temas de empoderamento, solidariedade e a importância da voz das mulheres no esporte.

É destacado o movimento de resistência que levou a mudanças significativas no futebol feminino espanhol, especialmente após o confronto com Luis Rubiales e os eventos relacionados ao assédio sexual envolvendo ele e Jenni Hermoso. 

Matérias analisadas:

https://www.eltiempo.com/deportes/futbol-colombiano/didier-luna-se-defiende-e-insiste-en-su-inocencia-tras-condena-por-injuria-505854

https://www.diarimes.com/es/deportes/230821/rubiales-pide-perdon-despues-su-beso-forzado-hermoso_132239.html

https://www.publico.es/deportes/rubiales-pide-perdon-avalancha-peticiones-dimision-beso-jenni-hermoso.html

https://es-us.noticias.yahoo.com/federaci%C3%B3n-venezolana-pide-investigar-ext%C3%A9cnico-003316237.html

https://www.biobiochile.cl/noticias/deportes/futbol-internacional/notas-futbol-internacional/2023/08/21/el-beso-a-la-fuerza-que-opaco-hazana-mundial-disculpa-forzada-molestia-y-por-que-nunca-debio-pasar.shtml