Por Laura Dolabella (@laura_dolabella)
Os anos de 2023 e 2024 foram marcados por uma série de casos de assédio no futebol feminino brasileiro. Desde mascote até técnicos, com um caso marcante em particular: as Sereias da Vila. O time de futebol feminino do Santos Futebol Clube, de São Paulo, teve suas estruturas abaladas pelo caso do técnico Kleiton Lima, que teve 19 denúncias de assédio moral e sexual em seu nome na ouvidoria do clube em setembro de 2023.
Segundo as apurações sobre o caso, já era algo que estava ocorrendo há um tempo, mas nenhuma providência havia sido tomada pela gestão do clube e diversas medidas foram tomadas para abafar o caso e silenciar as vítimas. A maneira de ocultar o caso mais clara foi o pedido para as jogadoras deixarem suas denúncias na ouvidoria do clube ao invés de prestar queixa na polícia. Segundo matéria da ESPN, a instrução foi de que não houvesse um registro de boletim de ocorrência contra o treinador. Além disso, ambas as coordenadoras do futebol feminino do Santos, Aline Xavier – que ocupava o cargo em 2023, durante as denúncias – e Thaís Picarte – atual gestora – revelaram que nada de concreto havia sido descoberto para julgar Kleiton.
Jogadoras do Corinthians protestam contra o silenciamento das Sereias da Vila
Entretanto, em 2023, ele foi denunciado através de 19 cartas relatando situações de desconforto como comentários sobre os corpos das atletas, sua própria vida sexual e até mesmo toques físicos. Segundo apuração da ESPN, houve denúncias de assédio moral e sexual em que algumas atletas eram beneficiadas em relação a outras de acordo com sua escolha religiosa e gosto pessoal do treinador. Ademais, Julio Resende, analista de desempenho do clube, juntamente com Kleiton, foi acusado de “cobranças excessivas, constrangimentos e ameaças”.
O GE foi o primeiro portal a noticiar o ocorrido e teve acesso às 19 cartas, compartilhando alguns trechos e dando visibilidade às denúncias: “Estou falando apenas do lado profissional, mas também estou cansada de seus comentários sobre os nossos corpos de uma maneira desrespeitosa, cansada de seus toques de maneira indevida” (Anônimo, trecho de uma das cartas).
A primeira manchete se refere à demissão do técnico após as cobranças das jogadoras através da ouvidoria. Contudo, Kleiton voltou em 2024 após um desmonte no elenco e afastamento de algumas funcionárias da equipe, mais de 10 jogadoras saíram do time após o caso. Depois de tudo isso, em abril, Kleiton pediu seu afastamento do clube e fez um boletim de ocorrência pois, segundo ele, estava recebendo ameaças de morte.
Notícia e eco: a mudança de comportamento da mídia para dar voz às jogadoras
Tradicionalmente, a mídia esportiva tende a desumanizar as vítimas quando se tratam de mulheres em casos de assédio dentro do esporte. No Brasil, a violência é fenômeno cultural e é sustentado pelo fato de estabelecer controle entre indivíduos. A violência contra a mulher está desde as formas mais simples e simbólicas até chegar em modos extremos. Ela é:
Resultado de uma ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida tanto por homens como por mulheres. A autora define violência como uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir. A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como “sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. (CHAUÍ 1985 apud SANTOS; IZUMINO 2005 p. 149)
Algo que ficou claro pelas declarações das vítimas de forma anônima para a ESPN e GE é a dificuldade que tiveram de serem ouvidas. Em alguns relatos, palavras como “silenciada” foram usadas para descrever o que aconteceu internamente no Santos. A forma de noticiar acaba influenciando na construção da narrativa.
Um diferencial deste caso, entretanto, é a quantidade de matérias publicadas pela mídia brasileira. Mesmo com os esforços do Santos para abafar o caso e silenciar suas jogadoras, ele foi noticiado e repercutido pelo jornalismo esportivo. Os principais portais – ESPN, GE, CNN Esportes, O Globo, UOL, Placar e Folha de S. Paulo – discorreram sobre o caso e apuraram as informações, revelando uma série de falhas da administração do clube, que buscou encobrir e silenciar as jogadoras a todo custo. Além disso, a primeira narrativa sobre o tópico levava em conta a visão da mulher, humanizando e entendendo o lugar de vítima dessas pessoas. Isso surpreende já que um estudo realizado por pesquisadoras da UFMG aponta que “[…] na maioria das vezes em que os crimes de violência contra a mulher são noticiados, os veículos de comunicação não humanizam as vítimas, não mostram as políticas públicas de enfrentamento disponíveis para combate desta prática delituosa e também não mencionam como o ciclo de violência pode ser rompido”.
Manchete do Sports Center sobre a polêmica

Apesar das opiniões contrárias ao agressor e à cobrança de pronunciamento dos clubes, ainda falta mostrar as possibilidades de combate a essas violências constantes.
Futebol e o silenciamento das mulheres
As repercussões do caso das Sereias da Vila tomaram proporções imensas tanto no Brasil quanto internacionalmente. Os portais de notícias que mais ecoaram o ocorrido foram GE, ESPN e CNN Esportes e algo mudou na forma como o caso foi a público. Em comparação a antigos episódios de assédio dentro do esporte, esse foi criticado pela mídia e foi dado o devido espaço para a exposição do lado das vítimas e não somente ao homem que cometeu o assédio.
Na coluna “Blog da Ana Thaís” no GE, a comentarista Ana Thaís Matos desabafou: “Esse texto não é sobre o Kleiton, não cabe ao jornalismo esportivo dizer se ele assediou ou não as mulheres atletas, esse caso deveria estar na justiça. Esse texto é sobre como o Santos conduziu todo o processo que começou com a denúncia de assédio, através de cartas de 19 jogadoras do clube no ano passado, direcionada ao treinador. As 19 cartas escritas por atletas do Santos não foram suficientes para que o desconforto delas fosse levado em conta num ambiente que deveria ser profissional e agregador.”.
Manchete do Blog da Ana Thaís, GE

Essa publicação do GE já demonstra grande avanço dentro do jornalismo esportivo no que diz respeito à denúncia e influência de dar voz a essas mulheres que foram obrigadas a se calar pelo meio que ocupam.
As Sereias da Vila
O time do Santos foi o primeiro campeão da Libertadores feminina em 2009, além de um dos pioneiros da modalidade no Brasil e se mostrava uma equipe sólida e com o mínimo de valorização que outros clubes não apresentavam para o futebol feminino. Bi-campeãs da Libertadores, campeãs brasileiras em 2017 e atuais campeãs do Paulista, as Sereias da Vila são um time tradicional no futebol brasileiro. Em um clube em que já jogou a melhor do mundo na história da modalidade, Marta, entende-se que há uma grande visibilidade e a tentativa de abafar os casos falhou desta vez.
As Sereias da Vila foram silenciadas por seu clube, mas o jornalismo e a mídia exploraram o assunto e colocaram à mostra as violências sofridas por essas mulheres. As repercussões nas redes sociais foram grandes e a visibilidade do assunto foi maior em meio ao abafamento do Santos Futebol Clube. Sem dúvidas, esse caso é um avanço para o jornalismo esportivo e seu papel social de informar e denunciar violências que são tão recorrentes no universo feminino. A forma de noticiar todos os acontecimentos dá esperança de que a mídia esteja evoluindo e abraçando causas que antes desprezava. O silêncio se transforma, agora, em um eco.
Sereias da Vila em 2023
REFERÊNCIAS
FERNANDES, Nathaly Cristina. NATIVIDADE, Carolina dos Santos Jesuino da. A naturalização da violência contra a mulher. Brazilian Journal of Development. Curitiba, 2020.
SANTOS, Patrícia. Estudo revela que 52% das jogadoras de futebol já sofreram assédio. Alma Preta, São Paulo, 20 mar. 2024. Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/estudo-revela-que-52-das-jogadoras-de-futebol-ja-sofreram-assedio/ Acesso em: 24 nov. 2024.
MATOS, Ana Thaís; GIUFRIDA, Bruno. Em cartas, jogadoras do Santos acusam técnico Kleiton Lima de assédios moral e sexual. GE, São Paulo, 07 set. 2023. Disponível em: https://ge.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/2023/09/07/em-cartas-jogadoras-do-santos-acusam-tecnico-kleiton-lima-de-assedios-moral-e-sexual.ghtml. Acesso em: 24 nov. 2024
MATOS, Ana Thaís. Retorno de Kleiton Lima ao Santos revolta atletas e mostra como é difícil mulher denunciar assédio. GE, São Paulo, 09 abr. 2024. Disponível em: https://ge.globo.com/blogs/blog-da-ana-thais/post/2024/04/09/retorno-de-kleiton-lima-ao-santos-revolta-atletas-e-mostra-como-e-dificil-mulher-denunciar-assedio.ghtml. Acesso em: 24 nov. 2024
ELIAS, Jalile; LEITE, Victória. Relatos à ESPN revelam que denúncias contra Kleiton Lima no Santos vão além de cartas. ESPN, 12 abr. 2024. Disponível em: https://www.espn.com.br/futebol/santos/artigo/_/id/13505741/relatos-revelam-denuncias-kleiton-lima-santos-alem-cartas. Acesso em: 24 nov. 2024
ALMEIDA, Janaína Barbosa; VIMIEIRO, Ana Carolina; GARCÊZ, Regiane Lucas de Oliveira. Mídia, violência, gênero e esporte: análise da cobertura noticiosa dos casos de violência sexual envolvendo Cuca e Robinho. Intercom, 2022. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2022/resumo/0719202212045162d6c81329f3b.pdf. Acesso em 25 nov. 2024

