Por Jovana Meirelles e Mateus Moreira
“Não to fazendo nada mesmo… Vambora!” Foi assim que Duda Gonçalves aceitou vários de seus desafios ao longo da carreira, inclusive, o jornalismo esportivo. Nascida e criada em Belo Horizonte, Eduarda Gonçalves tem 24 anos e é repórter esportiva na ESPN, emissora internacional de esportes.
Formada em jornalismo, há apenas três anos, pelo Centro Universitário Newton Paiva, Duda nunca teve o sonho de entrar na área e explica ser algo que, simplesmente, aconteceu. Ela cursou seis meses de Publicidade e Propaganda, mas, pouco tempo depois, conseguiu uma bolsa para jornalismo – onde se encontrou.
Comunicativa, sempre lendo, escrevendo e falando muito, Duda não conseguiu mais sair do jornalismo. Como quem gosta de fazer várias coisas ao mesmo tempo, ela não consegue ficar parada e já fez de tudo um pouco: desde estágio de fotografia e marketing digital, até a passagem pela produção da TV Alterosa.
Mas o que pouca gente sabe é que Duda Gonçalves entrou na faculdade achando que tinha perfil para política e admirava a jornalista Aparecida Ferreira. Ela também gostava do caderno de gerais e tinha intenção de focar em pautas sociais. Naquela época, o esporte nem passava pela sua cabeça.
“Entrei na faculdade falando ‘vou trabalhar com comunicação social, com comunidade, quero fazer algo que seja diferente e eu possa devolver para a sociedade’. Tanto que eu me formei com um TCC voltado para a comunicação social, mais voluntária, e hoje sou repórter esportiva… Dois perfis totalmente diferentes”, contou Duda Gonçalves à nossa reportagem.
A entrada de Eduarda no mundo do esporte foi despretensiosa, assim como tudo na sua vida. Em novembro de 2018, ela recebeu o convite para ser estagiária e repórter esportiva na Rádio Inconfidência. Acreditando que essa fase duraria pouco, ela aceitou a proposta e, desde então, não largou mais o jornalismo esportivo.
A jornalista esportiva Duda Gonçalves
Em 2018, a Rádio Inconfidência tinha o projeto “Comentaristas Juniors”, em que os estudantes participavam de algumas transmissões da Rádio nos estádios. No terceiro período da faculdade, uma professora disse que Duda tinha uma voz muito boa e que deveria fazer um teste de locução, gravando alguns boletins para a Rádio.
Mais uma vez de forma despretensiosa, Duda topou. Logo, foi escalada para o jogo entre América e Vitória, pela Série B de 2018. Depois, para a partida entre Cruzeiro e Racing, pela Libertadores. Pouco tempo depois, José Augusto Toscano ofereceu a vaga de repórter, como estagiária. Mas colocou uma condição: para ser repórter, Duda também teria que narrar, continuando o legado de Isabelly Moraes – primeira mulher a narrar um jogo de futebol em uma rádio mineira.

Duda ficou na Inconfidência por 1 ano e 10 meses. Saiu em outubro de 2020, já contratada pelo Atlético Mineiro, para ser repórter da GaloTV. Pouco tempo depois, trabalhou no jornal O Tempo. Por fim, foi para a ESPN em 2021, como narradora, após participar do reality ‘’Narra Quem Sabe”. Pouco tempo depois, recebeu uma nova missão: ser repórter setorista dos clubes mineiros, em Belo Horizonte.
“Acho que não caiu essa ficha ainda, as coisas foram acontecendo muito rápido e nunca foi meu sonho ser repórter esportiva. Sempre tive uma ligação, a família é apaixonada com futebol, sempre fui de arquibancada, mas nunca tive esse olhar para trabalhar com comunicação e esporte ao mesmo tempo. As coisas aconteceram e até hoje eu brinco que não sei se eu quero continuar no esporte porque eu nem queria entrar”, disse a jornalista.
Morte do Rei: a notícia mais impactante
Mesmo com uma carreira em ascensão, Eduarda presenciou eventos marcantes, ainda no auge de seus 23 anos. Em seu primeiro ano na ESPN, cobriu o Athletico Paranaense, na final da Libertadores contra o Flamengo, em Guayaquil, no Equador.
Apesar da relevância internacional da cobertura, o momento mais marcante de sua carreira ainda estava por vir: a morte de Pelé, o Rei do Futebol. Duda conta que os instantes antes do falecimento do ídolo mundial foram tomados por insegurança e ansiedade.
“Eu fui pensando ‘espero que não aconteça nada porque eu nem sei como dar a notícia’. Ninguém da minha família nunca morreu e eu nunca tinha participado de nada dessa magnitude e ele já estava há um mês internado”, contou.

A imensidão do que acontecia ao seu redor não facilitou a responsabilidade de noticiar um dos fatos mais difíceis para o futebol brasileiro.
“Fui no modo automático, comecei a tremer na hora que chegou a notícia. Lembro que eu estava pronta para entrar no ar e desceu um helicóptero da Globo, da Record, um carro da Reuters parou do meu lado e eu paralisei. Olhava para a dimensão, repórteres do mundo inteiro, e eu pensei ‘o que eu estou fazendo aqui? Eu quero voltar para a minha casa’”, explicou Duda.

A morte de Pelé teve repercussão mundial. Mesmo de uma geração diferente daquela que assistiu o Rei, Duda destaca o peso deste momento dentro e fora do esporte:
“É um ídolo do nosso esporte. Não o conheci pessoalmente, mas tive que falar da grandeza dele.”
‘‘Mais um pedaço de carne’’: a presença feminina no esporte
O jornalismo esportivo no Brasil é majoritariamente dominado por homens e, principalmente, homens brancos. Nos últimos anos, algumas profissionais mulheres, como Duda, foram conquistando seu espaço pouco a pouco. Para Eduarda Gonçalves, ser uma mulher no meio do esporte não é uma tarefa nada fácil, principalmente por causa de estigmas e estereótipos relacionados à presença feminina no esporte.
“O que eu ouço é que eu nunca joguei bola, que nunca disputei uma peladinha, que nunca disputei um campeonato e estou ali para ver perna de jogador e analisar um contexto físico que não estou interessada”, desabafou Duda.
O ambiente ainda muito masculinizado e misógino deixa os homens confortáveis para oprimir ou excluir essas mulheres no ambiente de trabalho. A jornalista compartilha um pouco da sua experiência, reforçando a dificuldade em lidar com isso:
“Quando a gente chega em um estádio a nossa primeira posição é tentar se defender e a gente nem sabe do quê. Ainda hoje muitos colegas fazem piadinhas e ainda temos mulheres nesses espaços que corroboram com esses discursos. Então não é fácil e a gente tem que se impor todos os dias, provar duas vezes mais a nossa competência e, além disso tudo, exercer feminilidade porque, se não, viramos mais um homem ali dentro.”

No contexto mineiro, o cenário é ainda mais problemático, tendo em vista o mercado muito enxuto e com a mínima presença de mulheres. Apesar de acontecerem com menos frequência do que antigamente, casos de assédio e discriminação são comuns, principalmente, na forma de comentários e olhares, como já aconteceu com a Duda.
“Percebo e já percebi olhares, falas, piadinhas, mas eu sempre cortei. São coisas como ‘não usa essa roupa porque eu fico excitado’ e a gente vai passando por cima. Em Belo Horizonte, a gente convive com assediadores o tempo inteiro, mas se for citar, não sobra um. Tento lidar da melhor forma para que não se crie um problema maior. A gente sabe para qual lado a corda arrebenta e é sempre para o nosso.”
No caso de Duda, todo esse peso é ainda maior por ser uma mulher negra. A falta de interesse em incluir mulheres e, sobretudo, mulheres negras em setores esportivos é fruto de um preconceito ainda muito enraizado. Segundo a jornalista, ocupar esses espaços é desgastante, mas não impossível.
“É tentar sobreviver, jogar o jogo do sistema. Porque, se for para o embate total de ‘sou mulher e vão ter que me aturar’, você não sobrevive. Mas, ao mesmo tempo, se fizer todo o jogo dessas questões, você sobrevive de uma forma que não é interessante. Em um lugar de servidão, para ser mais uma, ou, como eu já ouvi: ‘mais um pedaço de carne’”, explicou.

Embora muitos avaliem que o cenário do jornalismo esportivo esteja se transformando em um ambiente mais inclusivo, para Eduarda, não é este o caso. Segundo ela, não há transformação, pois as mudanças que vemos nas emissoras acontecem por cobranças externas e por obrigação, com o intuito de manter uma boa reputação.
Para a repórter, não há mudança porque mulheres e mulheres negras ainda chegam para ocupar cargos da base e não posições de autoridade, ocupadas por homens brancos e mais velhos, que reforçam o sistema.
Duda chama atenção para o mercado de BH, que caminha muito lentamente nesse sentido e teve sua primeira narradora de rádio apenas em 2017, em uma empresa pública. Para ela, as mudanças ainda são muito iniciantes e a presença parece ser a melhor forma de lutar para que as coisas melhorem.
“As coisas ainda estão acontecendo na marra, por obrigação, cobrança. A gente ainda está chegando, discutindo se a mulher tem competência para falar de esporte, por que nas redações não têm pessoas negras… Vamos ver transformação quando uma mulher preta chefiar um departamento de esportes, aí a gente pode falar. Tenho feito menos militância verbal e mais presença, porque acho que esse é o caminho. A gente tem esse espaço, merece e vamos lutar por ele também”, afirmou.

“É branco demais’’: a exceção à regra
O fato de nunca ter sonhado em ser jornalista pode ter relação com um grande problema estrutural da profissão: a falta de representatividade. Enquanto mulher negra, Duda chama atenção para a ausência de pessoas negras nos veículos que consumia ao longo de sua formação.
“A gente tem um ou outro pioneirismo de mulher negra na televisão, no rádio, mas voltado para esporte essa referência é pouco palpável. Ouvi sempre Itatiaia, mas não tinha referência de pessoas negras, como eu ainda não tenho. Fui construindo isso ao longo do tempo. Na frente das telas, essa construção ainda é muito recente.”
Ocupar este lugar sem abrir mão da própria identidade tem um peso ainda maior. Se ser mulher no meio esportivo já é desgastante, Duda entende que ser uma mulher negra dificulta em dobro a caminhada. Diante de tanto preconceito, má vontade e desinteresse, a repórter se vê como alguém que foge à regra.
“No meu caso, que eu costumo dizer que é uma exceção, é ser uma mulher negra nesse lugar. É tudo isso que eu falei dobrado, porque a gente já sabe tudo que acarreta ser uma pessoa preta no país. Eu trabalho em uma emissora que é 95% branca e eu nem preciso dizer, é só ligar a televisão”, comentou.
Apesar de todo preconceito estrutural, a repórter defende que, pouco a pouco, os espaços estão sendo ocupados e reconstruídos.

“É muito difícil, é insuportável ter que lidar com racismo, preconceito, são muitas barreiras, mas está se tornando mais possível porque estamos alcançando esse espaço e a gente vai se fortalecendo. Achava que gente preta não ia ter vez nunca. Eu olho para os lugares brancos e eu penso ‘é isso, é branco demais e eu não vou conseguir’. Mas às vezes a gente abre uma porta e as coisas vão acontecendo”, explicou.
A instabilidade e o peso de ser uma mulher negra em um ambiente tão branco e masculinizado podem estar relacionados com a escolha por não estabelecer metas ou sonhos profissionais. Autodefinida como uma pessoa pé no chão, quando perguntada sobre seus sonhos atuais, Duda afirma que prefere não criar expectativas:
“Não tenho um sonho e um objetivo. Sou muito pé no chão e as coisas aconteceram muito rápido. Claro que eu sonho com uma Copa do Mundo, Olimpíada… Mas são muitos processos que eu ainda preciso passar para sonhar com isso. Então não coloco meta, porque eu tendo a criar expectativa e, se não acontecer, vou me frustrar. Não planejei nada do que aconteceu até agora e continuo não planejando porque acho que está funcionando assim”.
Por fim, Duda Gonçalves deixa um recado para aqueles que sonham em trabalhar com jornalismo esportivo e, sobretudo, para as pessoas negras.
“Não desistam, se coloquem, se mostrem e a gente vai criar esse apoio. Vamos fazer acontecer – às vezes não da forma que a gente quer. Somos exceção e as pessoas não têm problema em falar que somos cota ou um pedaço daquilo que é maior. Mas se a gente não se colocar, é muito mais fácil ter mais um branco no lugar.”

Segundo ela, passar por tudo isso, aceitar os desafios e persistir também são formas de romper com o sistema a cada dia. Ela explica que seu trabalho não é só por ela, mas também, pelos que virão depois.
“Melhor que seja eu tomando porrada… Que seja a minha cara por dez minutos ou por um minuto, do que mais um branco, porque é muito mais fácil. A gente sabe fazer e pode fazer. Vou continuar batendo e brigando por todo mundo, custe o que custar.”, concluiu.

