por Luísa Almeida de Paula (@itsluisaalmeida)
Ficha técnica
Título: Ted Lasso Temporada 3
Ano de produção: 2023
Direção: Erica Dunton, M.J. Delaney
Duração: 665 minutos
Classificação: 14 anos
Gênero: Comédia
Países de Origem: EUA
A terceira e última temporada de Ted Lasso, fenômeno da AppleTV+, chegou ao streaming em março deste ano. A série conta a história de Ted Lasso, o treinador do AFC Richmond, um clube de futebol masculino que disputa a Premier League – a principal liga de futebol da Inglaterra. Mesmo ambientada em um universo majoritariamente masculino com os jogadores do clube, a comissão técnica e Ted, um dos destaques da série está, justamente, nas mulheres. Nas três temporadas do show podemos ver que as relações femininas numa série sobre o futebol masculino britânico são redentoras.
Quando trabalhamos sobre representações de gênero em produções audiovisuais, o foco geralmente está em analisar ou denunciar os estereótipos ou representações problemáticas destas. Nesta resenha, pretendemos analisar as representações de feminilidade, de amizade feminina e de papéis sociais femininos na última temporada de Ted Lasso. (Esse texto contém spoilers).
A série apresenta ao público formas de ser mulher em nossa sociedade que, muitas vezes, não estão postas nem dadas; novos sentidos do que englobam ser mulher, o que é feminilidade e quais os papéis sociais que as mulheres podem performar. Em Cultura e Representação, Stuart Hall escreve: “nós concedemos sentido às coisas pela maneira como as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas, as histórias que narramos a seu respeito, às maneiras como as classificamos e conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos” (HALL, 2016, p. 21). Segundo o autor, a representação é uma parte essencial desse processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura (2016, p. 31). Dessa forma, a representação produz sentidos possíveis, valores distintos e novas significações; muda-se a representação, muda-se os sentidos. Neste ponto, Ted Lasso possibilita novas representações, logo, novos sentidos: a forma como as mulheres, a feminilidade e os papéis sociais das mulheres são representados no seriado, ajudam a pavimentar um novo caminho de significados e sentidos que atribuímos ao gênero feminino.
Existe um famoso teste, nascido de uma piada, para analisar como uma produção audiovisual representa mulheres a fim de avaliar a participação feminina em obras de ficção. O famoso teste de Bechdel utiliza três regras básicas: 1) tem que ter no mínimo duas mulheres, 2) que conversem entre si sobre alguma coisa 3) que não seja sobre homem. Na indústria do entretenimento, muitos filmes não passam no teste e acabam no mesmo clichê de apresentar mulheres rasas, superficiais e ‘homem-centradas’. Ted Lasso, mesmo sendo uma série sobre um clube de futebol masculino, passa no teste em praticamente todos os episódios: tem no mínimo duas personagens, que não obstante, são do elenco principal; conversam entre si sobre tudo – e também sobre homens. O relacionamento das duas subverte a lógica das representações de feminilidades e mulheres nas produções audiovisuais. Com o elenco principal sendo composto em sua maioria pelos jogadores do time, tem-se a impressão de que o show seja muito “homem-centrado”, no entanto, a produção tomou um rumo de desenvolver uma amizade real, verdadeira e solidária entre as duas protagonistas femininas.
Rebecca Welton (Hannah Waddingham), dona do AFC Richmond, é representada como a big-boss fria, vingativa e emocionalmente distante, que não precisa de ninguém. Na última temporada, após as transformações e desenvolvimentos das duas temporadas anteriores, Rebecca já não é mais fria e solitária, muito menos emocionalmente distante. Pelo contrário, Rebecca agora quer levar o Richmond para a glória maior, torná-lo um time competitivo e relevante no campeonato; enquanto que, a nível pessoal, como mulher, aprende a lidar com seus sentimentos e emoções, suas vulnerabilidades, dar mais chances para o amor e para se abrir.
Keeley Jones (Juno Temple), “famosa por ser quase famosa”, começa a série sendo representada como mais uma “maria-chuteira”, preenchendo os estereótipos de WAGS (wifes and girlfriends of sportsmen). No entanto, Keeley possui uma sólida inteligência emocional, sabe equilibrar suas emoções com a razão. Ela acaba se tornando uma executiva de RP, dona de uma empresa, mas que ao mesmo tempo, é “feminina”, emotiva, sensível e amiga.
Seria fácil para os roteiristas da série focar nos homens e não ter que lidar com as duas interagindo entre si, ou até mesmo, colocarem as duas personagens como inimigas, mas optam pelo caminho oposto: Rebecca e Keeley despertam o melhor uma da outra, se ajudam e se tornam melhores amigas. As lutas internas e as facadas nas costas que muitas vezes vemos acontecer em representações de gênero de papéis femininos não são combustível para o fogo feminino em Ted Lasso.
O legal da relação das duas é que elas possuem tão pouco em comum. Rebecca é da elite britânica, “classuda” e presidente do clube. Keeley era modelo e “maria-chuteira”, emotiva e sensível. Mas ao final da série, Rebecca aprendeu a deixar as pessoas entrarem em sua vida e a acreditar em si mesmo; enquanto Keeley veio a se tornar uma empresária e businesswoman, fazendo o seu próprio nome ao invés de se contentar a ser mais uma namorada de jogador. Rebecca apoia Keeley em sua carreira, servindo como uma espécie de mentora e a incentiva a abrir seu próprio empreendimento. Enquanto Keeley ajuda Rebecca a enxergar as barreiras emocionais que ela forjou para si após o divórcio com Rupert. Elas se completam de forma independente.
A terceira temporada acerta em representar a dupla fora do ambiente do clube, focando em cada uma individualmente. É uma temporada que apresenta as mulheres muito mais independentes, desvinculando-as aos homens e aos clubes, desenvolvendo-se pessoalmente e preenchendo outros papéis sociais. Destacamos alguns pontos:
- KEELEY JONES
Nessa temporada, o arco de Keeley concentra-se na parte profissional, como dona de uma firma de relações públicas. A personagem tenta equilibrar a gestão profissional enquanto chefe de um escritório, com seu jeito amigável, emotivo e sensível: conciliar a função de chefe com a função amiga. Essa atitude já foge daquele perfil boss, chefe mandona, rígida etc. Os roteiristas do seriado não representam Keeley como uma chefe desleixada que só pensa em ser amiga dos funcionários (num sentido Michael Scott[1]), mas como uma profissional competente que acredita em uma gestão humana e mais próxima, sem passar por cima dos outros. Ela acredita nas pessoas – e essa é uma característica presente na construção da personagem durante as três temporadas. Enquanto em muitas produções audiovisuais as mulheres em posições de liderança são representadas como frias, distantes, bravas e duras, Keeley é representada como uma chefe humana, próxima aos seus funcionários e que prioriza um ambiente de trabalho amigável e de relações positivas. Há aqui representações sociais de mulheres profissionais, que ocupam lugares de autoridade e decisão, sem cair nos clichês costumeiros e não sendo dependentes de uma figura masculina.
É interessante como a série trabalha o lado romântico da personagem. De “maria-chuteira” e dividida entre Jamie Tartt e Roy Kent, Keeley termina a série “sozinha”, focada no trabalho. Há um menosprezo muito grande na sociedade para com mulheres que abrem mão ou priorizam a vida profissional, como se isso as tornassem “menos” mulheres ou “menos” femininas. À mulher é incumbido o papel social de mãe, do lar, enquanto ao homem, é desejado que avancem, priorizem ou foquem em suas carreiras profissionais em detrimento das funções de pai, marido etc. A série trabalhou bem a personagem a ponto de ela poder representar essa parcela de mulheres que se encaixam nesse perfil girlboss, apresentando outras feminilidades possíveis.
Keeley representa todas aquelas mulheres ambiciosas que sonham grande, que desenvolvem seu lado profissional, que querem crescer e construir sua própria jornada e caminho. Aquelas mulheres que, muitas vezes, priorizam o trabalho e a profissão. Mas sem perder o lado afetivo, sensível e emocional. Mulheres que ajudam outras mulheres a se desenvolverem e crescerem. Há outras representações em Keeley: ela é uma profissional dedicada e empenhada em seu trabalho, que não renuncia a sua vida profissional porque sabe que isso é importante para ela enquanto mulher.
- REBECCA WELTON
Rebecca é representada como a chefe girlboss em algumas cenas importantes da terceira temporada, destacadas a seguir. O segundo episódio gira em torno das movimentações dos clubes da Premier League para contratar o renomado jogador Zava. Rebecca, enquanto presidente do Richmond, está receosa a princípio por achar um jogador caro e uma espécie de ‘diva’, que trará mais drama para o clube. No entanto, ao saber que o West Ham entra na jogada, ela vê como uma oportunidade para vencer/derrotar Rupert. Zava não quer se encontrar com os representantes do Richmond e aceita a oferta do Chelsea. No primeiro jogo da temporada, os Greyhounds jogam contra o mesmo Chelsea e o jogador está no estádio. Também no estádio, Rupert Mannion consegue convencer Zava a fechar com o West Ham, frustrando os planos de Rebecca. Indignada com a escolha do jogador, Rebecca confronta-o, alegando que ele escolheu a opção mais fácil ao ir para o West Ham. Na entrevista coletiva ao final do jogo, Zava anunciou sua mudança de decisão e que optou em ser jogador do AFC Richmond. Nesse pequeno núcleo do episódio, Rebecca é representada como uma mulher forte e decidida a ter aquilo que ela acredita e deseja; não aceita passivamente as situações como dadas, mas demonstra uma firmeza para ter aquilo que quer. Se pensamos em feminilidade como uma estratégia de poder, pode-se dizer que na terceira temporada, os arcos de Rebecca ecoam isso. Tira-se Rebecca de uma representação de gênero frágil e intimidado.
No décimo episódio, intitulado “Pausa internacional”, a série traz de volta o personagem Edwin Akufo, um bilionário africano que volta a Inglaterra para sondar a criação de um tipo de Superliga – quando os maiores e mais ricos times decidem competir entre si, acabando por dificultar a vida e situação financeira dos menores times. Rupert Mannion convida Rebecca para participar da reunião sobre a criação da Liga Akufo, com uma justificativa de que seria importante ela participar e que seria positivo para o jogo/futebol. Rebecca não quer entrar na Liga Akufo como representante do AFC Richmond e acredita que o único motivo de Rupert a ter convidado é porque ela é uma mulher e faria cair bem para a liga. Leslie reforça que ela tem um lugar na mesa e só por isso já é importante, que ela deveria ir.
Antes da reunião, Rebecca está ansiosa e prestes a ter um ataque de pânico, mas, de frente para o espelho, vê a Rebecca criança refletida: inocente, livre e encontra forças para se recuperar; ela se vê não só pronta para a reunião, mas acredita que está lá por mérito pessoal, pela boa gestão no Richmond e porque conquistou seu lugar, não porque seu ex-marido a convidou para vender uma imagem positiva da Liga. Na reunião, Rebecca é, claro, a única mulher e sofre uma série de micro-agressões: machismo, objetificação, sexualização.
O destaque dessa cena está em trazer a Rebecca para esse lado mais “profissional” de gestora e as implicâncias que isso traz para ela enquanto mulher: ela não está na mesma posição que os demais colegas donos de clubes, porque ela é uma ‘mulher gostosa’. Há um demérito e sexualização de sua pessoa por parte dos homens que a colocam nesse lugar de menos importante, do Outro, da minoria. Mas mesmo com todas essas agressões, ela consegue ser forte, convicta e profissional. Esse arco em si já é muito significativo se considerarmos que pouquíssimas mulheres são gestoras de clubes de futebol. Em um estudo feito pelo portal Gênero e Número[2] sobre as gestões de clubes profissionais ligados à CBF (Confederação Brasileira de Futebol), temos 2,7% de presença feminina em cargos de liderança.
A gente tem dois mundos aí: o mundo do futebol e o mundo dos negócios. É a estrutura do machismo funcionando nestas duas vertentes: em um esporte que foi naturalizado no masculino, com os ideais de virilidade, de força, e no mundo dos negócios, em que até hoje — e basta observar os dados do IBGE em relação a cargos de gestão, cargos de direção, de decisão de forma geral — as mulheres são uma diminuta parcela (JANUÁRIO, 2021).
A feminilidade de Rebecca é representada nessa temporada com uma junção da sua função profissional com seu papel social de mulher. Rebecca é uma girlboss, trabalhadora profissional e poderosa, mas também é uma mulher vulnerável, amiga e que quer ter mais uma chance para o amor (como é tratado no episódio seis, na conexão com o homem neerlandês). Não está reclusa em casa chorando pelo ex-marido, que já superou; não é uma workaholic que perdeu a razão. Há outras representações em Rebecca: ela é tudo isso. E é assim que mulheres reais são.
Esses destaques centrados em Keeley e Rebecca mostram representações de feminilidade e de papéis sociais femininos que fogem do comum e dos estereótipos já consagrados na cultura audiovisual. Os arcos de Keeley e Rebecca nessa temporada (e nas anteriores) não existiram somente para apoiar ou refletir um homem; não foram arcos construídos ao redor de um homem. Não são os papéis femininos básicos e superficiais, mas são mulheres completas, independentes, profissionais, que trilham suas próprias jornadas, lidam com suas questões pessoais e emocionais e, também, se relacionam com homens, mas não como dependentes destes. Os arcos femininos são redentores em um seriado que se passa num universo predominantemente masculino. E é por essas e tantas outras questões, que estão no cerne da representatividade, que Ted Lasso se tornou um fenômeno consolidado. Há de se crer que outras representatividades são celebradas e que um outro futebol é possível.
Referências
HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
[1] Referência ao seriado The Office.
[2] Apenas 2,7% dos gestores de clubes de futebol são mulheres. Disponível em: https://www.generonumero.media/reportagens/mulheres-no-futebol/. Acesso em 21 de junho de 2023.

