por Fernanda Mudesto Passos (@fernanda.mudesto)
Ficha técnica
Título: Sally: Fisiculturismo e Assassinato (Killer Sally)
Ano de produção: 2022 (3 episódios)
Direção: Nanette Burstein
Duração: 50 minutos (cada episódio em média)
Classificação: 16 anos
Gênero: série documental; esporte; crime
Países de Origem: EUA
Onde assistir: Netflix
Alerta de gatilho: o documentário (e esta resenha) abordam temas potencialmente sensíveis, como violência doméstica, abuso sexual e assassinato.
Seguindo a onda de sucesso das produções de true crime, o título de hoje mergulha em um dos casos mais polêmicos do universo esportivo americano: o assassinato do fisiculturista Ray McNeil pelas mãos de sua esposa (e também fisiculturista) Sally, no Dia dos Namorados de 1995.
Com uma narração feita majoritariamente em primeira pessoa pela própria Sally, sobreposta a imagens caseiras do acervo pessoal da família McNeil, a minissérie documental de três episódios mostra a complexa evolução do relacionamento do casal, bem como os bastidores do mundo do fisiculturismo e as reverberações do crime na mídia.
Sally e Ray no início de seu relacionamento

Reprodução
Disponível em https://musicaecinema.com/sally-fisiculturismo-e-assassinato-tudo-sobre-a-nova-serie-de-true-crime-da-netflix/. Acesso em: 08 maio 2023.
Sally e Ray se conheceram em um campeonato de fisiculturismo do Corpo de Fuzileiros americano e, nas palavras da atleta, foi “luxúria à primeira vista”. Alguns meses depois, eles se casaram e sua parceria dentro e fora do esporte começou a chamar atenção de diversos veículos midiáticos.
No primeiro episódio, a história de amor é tão bem construída que um espectador desavisado poderia ser pego de surpresa com as revelações que vêm a seguir: por trás do que parecia uma combinação perfeita, escondia-se uma série de abusos físicos, sexuais e psicológicos, que começaram apenas três dias após a cerimônia de casamento. Segundo Sally, o passado conturbado de Ray e a falta de dinheiro para que ele se dedicasse plenamente ao fisiculturismo profissional eram os principais gatilhos por trás das agressões. Na tentativa de amenizar a tensão, ela colocou sua carreira em segundo plano e passou a buscar alternativas que trouxessem mais lucro, como concursos de levantamento de peso e luta livre.
Neste ponto da narrativa, a minissérie ressalta a dificuldade que mulheres fisiculturistas enfrentavam para existir em sociedade, pelo incômodo que seu físico provocava nos demais. Tal observação pode ser relacionada às discussões de Jaeger e Goellner (2011) sobre feminilidades desviantes, na medida em que segundo as autoras, “os volumosos corpos de algumas dessas mulheres desassossegavam e, de certo modo, fissuravam representações dominantes de feminilidade”. Paralelamente, estas imagens que habitam a fronteira entre o aceitável e o aberrante também são capazes de despertar sensações de prazer (KRISTEVA, 1982), ponto endereçado pelo documentário ao mostrar a prática conhecida como “adoração dos músculos”. Tratava-se de sessões privadas de luta com mulheres musculosas, onde o foco não eram as práticas sexuais tradicionais, mas sim dinâmicas de dominação e submissão do corpo.
Foi justamente neste mercado que Sally conseguiu ganhar dinheiro para patrocinar a carreira de Ray e comprar esteróides para aumento de performance. No entanto, o abuso destas substâncias deixou seu marido ainda mais volátil e as agressões se tornaram cada vez mais intensas. O último episódio de violência ocorreu em 14 de fevereiro de 1995, após uma discussão sobre Ray estar com outra mulher no Dia dos Namorados, e terminou com Sally atirando duas vezes com uma escopeta.
O documentário não esconde que fazer uma análise do acontecimento como um todo é uma tarefa extremamente delicada, salientando que se tratava de uma relação atravessada por diversos marcadores interseccionais, como questões de raça, gênero, renda e corporeidade. Se por um lado operavam imagens ligadas ao comportamento violento de homens negros de origem periférica, a ideia de uma mulher cujo corpo tensionava os limites entre feminilidade e masculinidade também causava um desconforto generalizado.
Com base em sua aparência, alguns veículos colocaram Sally como plenamente capaz de se defender em casos de violência e, logo, incompatível com o papel de vítima. Para tentar amenizar tal visão, o advogado de defesa fez um trabalho de readequação de imagem, aconselhando-a a não levantar pesos durante o processo e até mesmo a remover as ombreiras de suas roupas para suavizar sua silhueta.
Paralelamente, o promotor do caso buscou reunir um conjunto de testemunhas que salientaram o caráter instável e violento de Sally, além de investigar seu histórico de transgressões no Corpo de Fuzileiros. Com isso, vieram à tona vários relatos acerca de brigas em que ela se envolveu, iniciadas sobretudo por ciúmes do marido.
Constitui-se então um cenário de disputa altamente explorado pela mídia da época entre as narrativas de homicídio doloso e legítima defesa. A jornalista investigativa Diane Dimond, que participou da cobertura do julgamento, alega que o caso de Sally chamou mais atenção do que outros de violência doméstica justamente pela persona instigante que ela representava. A “princesa marombeira” ou “noiva musculosa”, como foi chamada por veículos de comunicação, mesclava características de beleza hegemônica – a pele branca, os cabelos loiros e os olhos azuis – com uma força e combatividade inconciliáveis com o ideal de fragilidade feminina.
No documentário, Dimond também afirma que o crime ocorreu em um momento onde a imagem da “mulher raivosa” estava em alta, devido à repercussão dos julgamentos de Amy Fisher, Tonya Harding e Lorena Bobbit, que agrediram seus parceiros ou outras mulheres tidas como “competição”. Tal contexto abria espaço para manchetes sensacionalistas como “Instead of pumping iron, she was pumping bullets into her husband” (“ao invés de puxar ferro, ela puxou o gatilho contra seu marido”, em tradução livre), escrita pela própria jornalista em questão.
Além disso, é importante destacar que as discussões na esfera pública acerca dos efeitos da violência doméstica sobre as vítimas ainda estavam em um estágio bastante inicial, ganhando espaço gradativamente devido ao caso de OJ Simpson. Foi este processo judicial, inclusive, que popularizou o termo “síndrome da mulher agredida”, usado pela defesa de Sally para justificar os dois tiros disparados.
Todos estes fatores contribuíram para que, no fim das contas, o enquadramento privilegiado fosse o de uma mulher ciumenta e desequilibrada, com um físico monstruoso e uma capacidade igualmente monstruosa de cometer atrocidades de maneira premeditada. Em seu discurso de abertura, mostrado parcialmente no documentário, o promotor Dan Goldstein pinta um retrato claro desta figura abjeta: “[…] ela intimida e ameaça. Eu sei que é difícil dizer isso de uma mulher, mas Sally McNeil conseguiu anular a diferença de gênero”.
A esperança de uma possível sentença favorável a Sally foi enterrada de vez quando um pôster de um de seus filmes caseiros de luta foi aceito como evidência material. Nele, a ré aparecia referindo a si mesma como Killer Sally McNeil (Sally McNeil assassina), enquanto ostentava a escopeta que viria a ser a arma do crime. Assim, após mais de um ano de processo, ela foi condenada pelo júri popular a 19 anos de prisão em regime fechado por homicídio em segundo grau, quando há intenção de matar sem nenhuma justificativa iminente (diferentemente do que ocorre em situações de legítima defesa).
Ainda que a maior parte dos depoimentos coletados no documentário corrobore com a versão de Sally, a produção evitou perspectivas unidimensionais ao trazer também falas de amigos de Ray e do próprio promotor, que adicionaram novas nuances aos fatos apresentados pela atleta. Tal trabalho de escavação e exposição de múltiplos pontos de vista deixa nas mãos do espectador o veredito final e, acima de tudo, salienta as complexidades que atravessam as dinâmicas de convivência humana e da própria construção do “ser mulher”.
Pode uma mulher violenta ser agredida? Pode uma mulher agredida ser assassina? Pode uma mulher assassina ser perdoada?
Quase como se buscasse responder a este último questionamento, a minissérie termina com um tom de esperança e redenção, trazendo uma Sally liberta e aparentemente feliz, casando-se novamente na presença de seus filhos e netos. “Eu não me importo mais”, ela proclama, “Estou livre”.
Referências
ADELMAN, M. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, v. 11, n. 2, p. 445-465, 2003.
CREED, B. Horror and the Monstrous-Feminine: An Imaginary Abjection. Screen, Volume 27, Issue 1, January/February 1986, p. 44–71. 1986.
JAEGER, A; GOELLNER, S. O músculo estraga a mulher? A produção de feminilidades no fisiculturismo. Revista Estudos Feministas, v. 19, n. 03, p. 955-975, 2011.
KRISTEVA, J. Powers of horror: An essay on abjection (L. S. Roudiez, Trans.). New York, NY: Columbia University Press. 1982.

