por Paloma de Castro
Ficha técnica
Campanha: Camiseta para Amamantar
Ano de lançamento: 2022
Agência/Criação: draftLine BUE/Buenos Aires + Racing Club + AdverPR + Aeroset Produto: Camisa para amamentar
Marca: Racing Club
O Racing Club de Avellaneda é um clube de futebol argentino de tradição, fundado em 1903, que disputa a primeira divisão do campeonato argentino, além de campeonatos internacionais, como a Libertadores da América, com os seus times masculino e feminino.
Em outubro de 2022, o clube lançou uma campanha para divulgação de um novo produto: uma camiseta apropriada para amamentação. A camisa confeccionada pela fornecedora oficial, a Kappa, e desenhada pela estilista Lidia Navarro busca facilitar o momento de amamentação de bebês por pessoas lactantes ao contar com uma abertura abaixo do peito, com uma dupla camada de tecido da camisa, que permite amamentar sem precisar retirar a vestimenta ou até mesmo deixar de usá-la.
O clube, juntamente com a agência criadora da campanha e produto, e com apoio da Asociación Civil Argentina de Puericultura – ACADP, tiveram como objetivo trazer visibilidade ao preconceito ainda sofrido por muitas lactantes em ambientes públicos no momento de amamentação dos seus bebês. Parte da sociedade ainda enxerga o ato como obsceno, desnecessário e desconfortável. No vídeo de lançamento da camisa, algumas mães torcedoras dão depoimentos sobre a descriminação sofrida em ambientes públicos como dos estádios.
Essa iniciativa pioneira também teve a intenção de ser reproduzida mundialmente, tanto que o próprio clube afirma que a matriz de confecção da camisa ficará disponível para utilização por qualquer outro clube que deseje fazer o mesmo para suas consumidoras-torcedoras, ou seja, não foi patenteado pela fornecedora esportiva ou clube.
Vídeo de lançamento da camiseta para amamentar

Reprodução
Fonte: em: https://youtu.be/Cr2L2vd3sCU. Acesso em: 15 jun. 2023.
O vídeo que lança a campanha e a nova camisa do time Racing para as lactantes tem um 1 minuto e 30 segundos e foca em ouvir os depoimentos dessas mulheres torcedoras, além de mostrar o processo de criação do design pioneiro no futebol. O vídeo inicia mostrando o ambiente do estádio do clube, espaço público, com uma família de pai, mãe e filha entrando no local. Já nos primeiros segundos passamos a ouvir depoimentos de três mães torcedoras. Ouvimos uma mãe contar que antes mesmo de ter uma carteira de identidade (DNI na Argentina) a sua bebê já teria a carterinha de sócia do clube, reforçando o sentimento de pertencimento e paixão clubística também entre mulheres e crianças. Outra torcedora conta a felicidade de levar sua filha pela primeira vez a um jogo do Racing e inicia a conversa sobre a amamentação em público. A mesma diz: “eu dou o peito a ela por escolha porque é algo que eu escolho fazer”. As três mães que dão seus depoimentos no vídeo reforçam que o ato de amamentar em público ainda gera um desconforto, que muitos acreditam que elas devem se esconder o máximo para alimentar seus filhos. Uma delas deixa claro em seu depoimento a indignação por um ato natural de alimentar um bebê causar tamanha estranheza.
Dando continuidade à narrativa de caráter dionisíaca (CARRASCOZA, 2004), ou seja, recurso retórico de utilização da emoção para sensibilizar e engajar o consumidor, passamos a ter no vídeo cenas da criação do modelo de camisa com depoimento também emocionado da estilista Lidia Navarro. O clube reforça querer acompanhar as lactantes em seus momentos onde quer que estejam, inclusive e principalmente, nas arquibancadas dos estádios. A ideia, então, foi trazer praticidade para o momento de amamentar e o vídeo se encarrega de trazer toda a compaixão pela causa a partir dos depoimentos, trilha sonora crescente e imagens da torcida e da camisa confeccionada.
Nas principais redes sociais do clube pudemos observar o seu alcance. No Instagram, o vídeo teve em torno de 295 mil reproduções e 432 comentários. Já no Facebook, mais de mil reações, 41 comentários e 285 compartilhamentos. No Twitter, 1.236 retweets; 747 comentários e 9.142 curtidas. Além da repercussão local, a campanha também ganhou visibilidade no Brasil em diferentes portais de notícias, de esportes e especializados em marketing e publicidade, além das redes sociais. Foi possível, inclusive, identificar comentários de brasileiros que marcavam seus times de coração para cobrar uma iniciativa parecida.
Comentários de torcedores de clubes brasileiros no Twitter do Racing

Reprodução Twitter
Fonte: https://twitter.com/RacingClub/status/1583911069554049025?s=20.
Acesso em: 15 jun. 2023.
De modo geral, segundo dados das marcas envolvidas na campanha, a mesma foi mencionada mais de 23mil vezes nas Internet, repercutindo em diversos portais de notícias, com ganho de mídia de 217 mil dólares e venda esgotada da camisa em uma semana – segundo diretor criativo Diego Gueler Montero. A proposta do vídeo da campanha em si também se assemelha a outras dentro do universo dos clubes de futebol que acabam “viralizando” e ganhando notoriedade em prêmios internacionais no âmbito publicitário. Dito isso, a campanha foi inscrita pela agência draftLine BUE/Buenos Aires em algumas premiações da área criativa.
Resultados da campanha

Fonte: https://www.linkedin.com/posts/diegogueler_we-created-the-breastfeeding-jersey-in-collaboration-activity-7069051373664763904-NizZ/.
Acesso em: 15 jun. 2023.
A campanha do Racing tem um significado importante na busca pela representatividade de mulheres torcedoras e pessoas lactantes. Em um ambiente entendido mundialmente como reduto masculino, as arquibancadas dos estádios refletem um problema social estigmatizado de que o ato de amamentar crianças fere, de alguma forma, o outro. A participação das mulheres no ambiente do futebol ainda está muito associada a um comportamento pacífico, passivo e não deturpador da ordem social de um ambiente masculinizado. As mulheres têm seus corpos controlados, a elas caberia embelezar os estádios, e não se comportar como outros homens ou gerar desconforto com seios à mostra para alimentar seus bebês, por exemplo. Apesar de haver a identificação de uma característica maternal associada a um tipo de torcedora no futebol, como as torcedoras-símbolo (COSTA, 2006), há uma contradição nas representações aceitas quando uma mulher mãe age de forma considerada inadequada ao amamentar um bebê em público.
Patricia Hill Collins (2000) ao tratar do pensamento feminista negro nos apresenta quatro domínios de poder inter-relacionados que se aplicam a diferentes formas de opressão e podem contribuir para uma ampliação da compreensão da política de empoderamento conforme a mesma cita.
Qualquer matriz específica de dominação, quer seja vista pelas lentes de um sistema único de poder, quer seja considerada à luz das opressões interseccionais, é organizada por quatro domínios de poder inter-relacionados: o estrutural, o disciplinar, o hegemônico e o interpessoal. (COLLINS, 2000, p. 494-495).
No domínio disciplinar, as instituições e a burocracia contribuem para regular as mulheres negras nos espaços sociais, administrando as relações de poder. O mesmo podemos interpretar com relação às mulheres torcedoras nas arquibancadas que ocupam esses espaços, mas são organizadas de modo controlado e vigiado (FOUCAULT, 1999) onde devem reproduzir comportamentos considerados apropriados ao corpo feminino: docilidade, disciplina, graciosidade. Essa expectativa de comportamento da mulher torcedora em ambientes como os estádios acaba por excluí-las, de certo modo, destes grupos por muitas não se sentirem representadas, atrelando também aos casos de violência comumente presentes no futebol.
Por isso, é preciso refletir sobre a importância das representações de diferentes perfis de torcedoras nos espaços sociais do futebol. O caso aqui apresentado ao mesmo tempo que afirma e apoia a presença das mulheres – aqui mães lactantes – nos estádios, traz luz a um paradoxo. Se estão no estádio, não devem ser raivosas, se apresentam um marcador de feminilidade como a maternidade ao amamentar, não devem expor o momento em locais públicos. A elas não caberia a livre escolha, estariam sempre performando de acordo com as expectativas do outro.
O que sabemos é que ações assim devem ser incentivadas para que possamos iniciar uma discussão e fomentar políticas públicas voltadas a diferentes minorias no universo do futebol. É de extrema importância o Racing Club quebrar com essa lógica da opressão ao apoiar e até mesmo fornecer um produto voltado para as torcedoras e pessoas lactantes que poderão vestir a camisa do time com maior praticidade nesse período. Podemos perceber que tanto o clube como as marcas patrocinadoras envolvidas se apropriaram do discurso de Responsabilidade Social como estratégia de diferenciação no mercado esportivo. Entendemos, assim, que “[…] o futebol não pode deixar de lado estratégias que façam parte de seu papel como agentes de transformação social e os mesmos devem se aproveitar dessa função para desenvolver cada vez mais o conteúdo ideológico do próprio meio esportivo.” (ROCHA, 2014, p. 40). Atender essas demandas acaba por estreitar os laços com a torcida, pois irá nutrir o sentimento de pertencimento a partir das causas defendidas pelo seu time.
Contudo, o discurso não pode ficar em apenas uma ação pontual, reforçando que talvez tenha sido pensado muito mais para “viralizar” do que para promover uma mudança efetiva nesses espaços. Dito isso, é sabido que a camisa esgotou em apenas uma semana de vendas e ao que tudo indica, não teve reposição ou continuidade de produção do modelo para os novos padrões da temporada seguinte. Em uma breve pesquisa na loja virtual oficial do Racing e também no link de compra da camisa disponibilizado pelas marcas à época, percebemos que em menos de um ano o produto já não pode mais ser adquirido. Faltaria demanda? Acreditamos que esse não seria o problema.
Referências
CARRASCOZA, João Anzanello. Razão e sensibilidade no texto publicitário: como são feitos os anúncios que contam histórias. São Paulo: Futura, 2004.
COLLINS, Patricia Hill. Por uma política de empoderamento. In: COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro [recurso eletrônico]: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.
COSTA, Leda Maria da. O que é uma torcedora? Notas sobre a representação e auto-representação do público feminino de futebol. Esporte e sociedade, v. 2, n. 4, p. 1-31, 2006.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
FREITAS, Camilla. Pioneiro, clube argentino cria camisa de futebol própria para amamentação. ECOA UOL, São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/10/25/pioneiro-clube-argentino-cria-camisa-de-futebol-propria-para-amamentacao.htm. Acesso em: 15 jun. 2023.
ROCHA, Camila Patrícia Paiva da. A responsabilidade social como estratégia de marketing esportivo dos clubes de futebol – Case: Pelo Sport tudo, até depois de morrer. Monografia – Departamento de Comunicação Social (DCOM). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.
