Por Ana Flávia de Castro Nogueira, Ana Clara Crepaldi, Rani Costa Fernandes, Sarah Kato Naganuma, Taís Mendes
Não é novidade para ninguém que o Clube Atlético Mineiro vive dando escorregadas por aí quando se trata de posicionamento, ações e divulgações em assuntos como homofobia, racismo, violência de gênero e muito mais. Mas e quando precisamos olhar a fundo para enxergar o problema? Quando batemos o olho em certas postagens e à primeira vista achamos lindo, porque vemos a força que o time principal está dando para o time feminino e vibramos internamente, até percebermos que o poço é um pouco (ou muito) mais fundo que isso…
E qual o problema então?
Recentemente, no dia 19 de junho de 2022, o perfil do time feminino do Clube Atlético Mineiro fez uma postagem com o jogador do time masculino (Hulk Paraiba) convidando torcedores do clube a assistirem o jogo das “Vingadoras” (time feminino). No vídeo, além de convidar torcedores a assistirem ao jogo no estádio, o jogador apresenta um benefício especial: o sócio torcedor que comprar o ingresso ganha uma camisa autografada por ele (Hulk). Diante desse caso, podemos analisar alguns pontos principais.
Em primeiro lugar, vamos pensar nas representações contemporâneas em relação aos homens que praticam esportes, o estereótipo atribuído a eles é o combo de virilidade, coragem, força e honra. Como diz Raisa Schpun (1997),
“A identificação dos homens com o esporte é vista, assim, como um fenômeno inato. Todo um conjunto de normas, disciplinas e práticas sociais, mobilizam para confirmar tal ideia: aparecendo como espontaneamente atraídos pela competição, pelo treinamento físico e pelo desenvolvimento muscular, os rapazes são levados a reforçar sua virilidade e por consequência sua natureza máscula ”.
Com isso, questionamos então o primeiro ponto, por que colocar o atacante Hulk do time masculino principal do Atlético Mineiro para convidar torcedores ao campo para assistir o jogo do time feminino? Poderia ser para provar que o jogo merece ser assistido, pois tem um homem, ídolo do time masculino, entoando toda esta suposta honra e virilidade, que possivelmente, a pessoa que montou a estratégia de divulgação do jogo das Vingadoras, considera que falta no time feminino.
Além da questão da virilidade, nos colocamos a pensar se a importância de ter uma figura masculina à frente da divulgação, relaciona-se com a hegemonia masculina no futebol. É necessário que essa figura masculina valide o esporte feminino? O estádio é colocado historicamente como um lugar “de homens e para homens”, desde o campo até as arquibancadas. Sendo assim, é preciso um homem validar a ocupação das mulheres neste local marcadamente masculino?
“É notório que o universo do futebol caracteriza-se por ser, desde sua origem, um espaço eminentemente masculino; como esse espaço não é apenas esportivo, mas também sociocultural, os valores nele embutidos e dele derivados estabelecem limites que, embora nem sempre tão claros, devem ser observados para a perfeita manutenção da ‘ordem’, ou da ‘lógica’, que se atribui ao jogo e que nele se espera ver confirmada”.
Franzini, 2005, p. 316
É interessante analisar também os comentários da publicação, pois não há o questionamento do fato de um jogador do masculino estar anunciando o jogo feminino, muito pelo contrário, emojis de palmas e apoio ao jogador se sobrepuseram. Observe na figura a seguir:


Fonte: Reprodução Instagram. Disponível em em: https://www.instagram.com/p/Ce_dX63sGH1/ .Acesso 27/06/2022
Analisando os comentários da postagem, podemos destacar que quando uma pessoa diz “imagina o elenco do masculino assistindo essas meninas hoje no camarote do indepa ? a felicidade delas porra mlk seria de outro mundo”, remente à ideia de uma validação do time feminino pelo masculino, que parece que só ficará feliz se tiverem o apoio deles.
Em um outro comentário, um seguidor diz “podiam colocar os jogos delas antes ou depois dos jogos do time masculino! Ia ser massa!”. Isso se relaciona com a própria legenda do post, que cita em um determinado momento “Bora empurrar o @GaloFFeminino rumo à classificação no Brasileiro!”. Veja na imagem a seguir:

Fonte: Reprodução Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Ce_dX63sGH1/ Acesso 27/06/2022
O termo “empurrar”, utilizado na legenda, também remete a uma ação dos torcedores e até mesmo do time masculino como se as mulheres não conseguissem por si só. Nessa mesma legenda, há outro ponto importante que podemos notar: o valor dos ingressos. Se comparado aos ingressos para jogos masculinos, o valor para o feminino parece ser quase que simbólico, proporcional à desvalorização do futebol feminino no Brasil.
O mercado do futebol envolve investimentos e transações milionárias pelo mundo e, atualmente, há uma forte tendência de transformação dos times em empresas. Dessa forma, ter um bom faturamento é fator fundamental para assegurar a sobrevivência do time no mercado. O futebol feminino fica ameaçado por essa lógica, devido à falta de investimentos, visibilidade e público pagante nos jogos.
Na divulgação, também podemos perceber o apelo comercial para que haja a venda de ingressos para a partida de futebol feminina. Temos como recompensa para quem comprar o ingresso dentro das condições estabelecidas, um “Manto da Massa” autografado por um jogador do time masculino. Esse jogador é um dos nomes mais famosos atualmente no time masculino e, portanto, há esse “grande incentivo” para que as pessoas comprem os ingressos.
Esse é um apelo para que as pessoas se interessem em assistir ao jogo do futebol feminino, já que as jogadoras ainda lutam constantemente para legitimar seu espaço no esporte e, para isso, é preciso que o público geral se interesse em assisti-las jogando em prol de uma figura máscula. Nesse sentido, podemos resgatar um trecho do texto de Ludmila Mourão e Marcia Morel sobre a construção do futebol no Brasil e a resistência ao futebol feminino:
“A construção cultural brasileira concebe o esporte, e especialmente o futebol, como um espaço de práticas sociais masculinas através da sua história. E o futebol como uma prática esportiva identitária da construção deste masculino terminou por concentrar uma resistência, ainda maior do que os outros esportes, à prática feminina.” (MOURÃO e MOREL, 2005, p79)
Por último, finalizando o vídeo, Hulk Paraiba diz “corram, porque vai valer a pena”, trazendo para o público uma interpretação ambígua sobre o que realmente vale a pena: assistir o time feminino jogar ou o manto autografado por ele? Ainda, é importante pontuar que apesar do jogo ser do time feminino, não é nenhuma das jogadoras que assinam, simbolizando, assim, uma desvalorização do time feminino em prol de apenas um jogador do time masculino. Sendo assim, em primeiro plano está Hulk, em segundo o “Manto da Massa” e em terceiro, as Vingadoras, evidenciando uma hierarquização no futebol.
No entanto, nesse caso, não fica apenas evidente este tratamento diferenciado entre os times, como também pressupõe um planejamento de comunicação e divulgação, realizado internamente pela equipe de marketing do Galo, que também reitera ideias sexistas no esporte e coloca a mulher esportista em segundo plano. Nesse caso, a própria equipe comunicacional do time legitima a falta de espaço das mulheres no campo de futebol e na torcida, o que desvaloriza a capacidade feminina e evidencia o domínio masculino no esporte.
Esse problema parte, em alguma medida, do fato que há poucas mulheres em cadeiras de liderança no universo futebolístico, fazendo com que campanhas e postagens carregadas de simbologias machistas ainda ocorram. Liana Bazenela, Diretora do departamento de marketing e comunicação do Sport Club Internacional, deu uma entrevista intitulada “Contra-ataque: a voz das mulheres no futebol” para Meio&Mensagem, falando sobre essa necessidade de conquista de espaço das mulheres no esporte de forma estrutural.
“Eu, por exemplo, sou a primeira mulher dirigente de marketing de clubes do Brasil e aqui no Inter, a primeira diretora executiva. É um movimento de desbravar um espaço, com todos os paradigmas, preconceitos e histórias que construímos durante muitos anos, não é de uma hora para outra que conseguiremos conquistar um espaço com qualidade, com credibilidade. Eu não encontrei pares, estou a seis meses no clube e dentro dos fóruns de futebol, inclusive fóruns de inovação no futebol, de gestores de marketing, não existem mulheres nessas funções. A minha mesa de discussões é predominantemente masculina. É o começo de um movimento de mudança”
Liana Bazenela, diretora do departamento de marketing e comunicação do Sport Club Internacional
Dessa forma, é importante entender que não apenas há necessidade de valorizar a conquista das mulheres neste espaço tão cheio de estereótipos e preconceitos, como também é preciso uma mudança das lideranças dos meios de comunicação desportivos, para que não haja postagens que reforcem essa hierarquia entre os times, o machismo e outros maneirismos. Posto isto, encerramos com a seguinte reflexão:
“em se tratando de um país como o Brasil, onde o futebol é discursivamente incorporado à identidade nacional, torna-se necessário pensar, o quanto este ainda é, para as mulheres, um espaço não apenas a conquistar mas, sobretudo, a ressignificar alguns dos sentidos que a ele estão incorporados de forma a afirmar que esse espaço é também seu. Um espaço de sociabilidade e de exercício de liberdades”.
Goellner, 2005
Referências
ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, v. 11, p. 445-465, 2003.
ADELMAN, Miriam. Mulheres no esporte: corporalidades e subjetividades. Movimento, v. 12, n. 1, p. 11-29, 2006
CONTADO, Valéria. Contra-ataque: a voz das mulheres no futebol. Meio & Mensagem, 14 de dezembro de 2021. Disponível em <https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2021/12/14/contra-ataque-a-voz-das-mulheres-no-futebol.html>. Acesso em 28/06/2022
MOURÃO, Ludmila e MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia impressa em campo. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 26, n. 2, p. 73-86, jan. 2005.
SCHPUN, M. R. Códigos sexuados e vida urbana em São Paulo: as práticas esportivas da oligarquia nos anos vinte. In: SCHPUN, M. R. (org.). Gênero sem fronteiras. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997
FRANZINI, Fábio. Futebol é “coisa para macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 50, p. 315-328 – 2005.
***Esta crítica foi produzida como atividade da disciplina Mídia, Esporte e Gênero ofertada no semestre 1 de 2022 no Departamento de Comunicação Social da UFMG. A disciplina foi ministrada pela Profa Ana Carolina Vimieiro, pela doutoranda Olívia Pilar e pela mestranda Flaviane Eugênio.***